Pular para o conteúdo principal

Ministério da solidão por Eduardo Fraga*

 Recentemente foi noticiado que o Reino Unido criou um Ministério da Solidão, uma estratégia para tentar lidar com o que a primeira ministra Theresa May denominou como a “triste realidade moderna”. Dirigido por Tracey Crouch, os principais objetivos do ministério residem em desenvolver parcerias com empresas e população com vistas a impedir que as pessoas se sintam solitárias.
Entendo que dois aspectos merecem ser destacados no relato das autoridades britânicas, quais sejam: a triste realidade moderna e o desenvolvimento de parcerias para evitar que as pessoas se sintam solitárias.
É possível compreender a Modernidade como o período histórico que tem início no Renascimento, por volta do século 14 ou 15. Trata-se, grosso modo, de uma espécie de ruptura com os valores que organizavam a vida social e política na Idade Média e, por conseguinte, no advento de uma nova tradição pautada no antropocentrismo, conhecimento e racionalidade técnica. Na Modernidade, o homem ganha estatuto de ser superior e passa a se valer de seu conhecimento e desenvolvimento técnico para administrar e dominar o mundo- i.e. natureza- ao seu redor.
Caminhando por alguns séculos pela Modernidade, nos deparamos com mais um importante marco histórico, a saber, o advento da Revolução Industrial, e o incremento do sistema capitalista e lógica liberal.
Compreendendo o liberalismo como uma doutrina cujos principais alicerces consistem na defesa da liberdade individual nos campos econômico, político, religioso e intelectual. O homem moderno é alçado a autor, protagonista e responsável por sua própria história de vida. Isso posto, qual seria o aspecto “triste” da realidade moderna tal como definido pela primeira ministra britânica?
Penso que o aspecto triste se configura pelo incremento do individualismo que acompanhou o desenvolvimento da modernidade. Em um contexto histórico no qual somos considerados indivíduos plenamente autônomos e responsáveis por nosso destino, o que se testemunha é a busca contínua por um incessante aprimoramento que garanta a cada um de nós a inserção ou permanência no mercado de trabalho.
É sabido que a sociedade moderna se configura como uma sociedade de produção e consumo, isto é, necessitamos num primeiro momento conseguir ingressar no mercado de trabalho para, posteriormente, recebermos nossa remuneração e, desse modo, garantir nossa subsistência. No entanto, a possibilidade de inserção no mercado é limitada e, como somos senhores de nosso destino – uma vez que autônomos e responsáveis –, faz-se mister o constante aprimoramento de nossas competências.
No cenário que elaborei nos parágrafos anteriores, as relações humanas passam a ser pautadas por uma lógica de competição e exclusão, na medida em que meu semelhante passa a ser compreendido como um rival, como aquele que, assim como eu, busca sua inserção ou manutenção no mercado de trabalho que, por definição, é excludente. Sendo assim, os laços comunitários se tornam cada vez mais fluidos e as relações humanas cada vez mais utilitárias: qual o meu networking? O que a relação com determinada pessoa me acrescenta? Nesse cenário, acredito que possamos nos sentir sozinhos na multidão.
Em se tratando de idosos, é mister que se destaque também outra característica intrínseca ao capital e lógica consumista: a aversão ao velho. Basta atentar para as incessantes atualizações e “novas” versões dos gadgets que emergem em uma velocidade que não conseguimos acompanhar. Tudo se torna obsoleto em poucos meses. Na lógica do mercado isso não é diferente, basta um olhar um pouco mais cuidadoso para o interminável processo de formação continuada ou mesmo para a dificuldade manifesta por profissionais de mais idade de se realocarem no mercado de trabalho.
Nessa lógica de exclusão, justamente quando envelhecemos sofremos de maneira mais intensa as consequências da modernidade: laços familiares ou de amizade frágeis, incertezas quanto a possibilidade de autossustento e temor da solidão.
Com a permissão do leitor para me valer de um termo psicanalítico, penso que o Ministério da Solidão possa ser entendido como um sintoma da modernidade. Afirmo isso no sentido que se trata de um símbolo que condensa e nos convida a olhar e refletir a respeito do cenário que procurei apresentar – ainda que de forma breve e sem qualquer pretensão de esgotar o tema – nos parágrafos anteriores. Sendo assim, as palavras de Tracey Crouch, o segundo aspecto por mim destacado que, neste ponto retomo para concluir, me parecem elementares.
É sim preciso desenvolver parcerias com empresas e população com vistas a impedir que as pessoas se sintam solitárias. No entanto, não se tratam apenas de parcerias comerciais, mas sim de parcerias humanas cujo objetivo reside em resgatar aquilo que é comunitário, aquilo que nos é comum, isto é, laços de solidariedade, familiares e de amizade que, como sabemos, podem representar as maiores riquezas que possuímos.
*Eduardo Fraga especialista em Psicologia do Desenvolvimento Humano da Universidade Presbiteriana Mackenzie
Fonte: https://www.abrhbrasil.org.br/cms/ministerio-da-solidao/
Como complemento ao que Eduardo Fraga menciona ao falar de "parcerias humanas", vejam a fala da Vovó Neuza  neste Link https://www.instagram.com/tv/CcfdA90t1Qu/?utm_source=ig_web_copy_link


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O Dente-de-Leão e o Viva a Velhice

  A belíssima lenda do  dente-de leão e seus significados Segundo uma lenda irlandesa, o dente-de-leão é a morada das fadas, uma vez que elas eram livres para se movimentarem nos prados. Quando a Terra era habitada por gnomos, elfos e fadas, essas criaturas viviam livremente na natureza. A chegada do homem os forçou a se refugiar na floresta. Mas   as fadas   tinham roupas muito chamativas para conseguirem se camuflar em seus arredores. Por esta razão, elas foram forçadas a se tornarem dentes-de-leão. Comentário do Blog: A beleza  do dente-de-leão está na sua simplicidade. No convívio perene com a natureza, no quase mistério sutil e mágico da sua multiplicação. Por isso e por muito mais  é que elegi o dente-de-leão  como símbolo ou marca do Viva a Velhice. Imagem  Ervanária Palmeira   O dente-de-leão é uma planta perene, típica dos climas temperados, que espontaneamente cresce praticamente em todo o lugar: na beira de estrada, à bei...

Os dentes e o contato social

Antônio Salazar Fonseca é membro da Sociedade Brasileira de Odontologia Estética Crédito: Juliana Causin/CBN. sábado, 19/09/2015, 09:30  'Ausência dos dentes leva à ruptura do contato social', afirma dentista. Antônio Salazar Fonseca explica que a prevenção é fundamental para manter a saúde da boca. Segundo ele, as próteses têm tempo de vida útil, portanto os usuários devem renová-las. http://cbn.globoradio.globo.com/programas/50-mais-cbn/2015/09/19/AUSENCIA-DOS-DENTES-LEVA-A-RUPTURA-DO-CONTATO-SOCIAL-AFIRMA-DENTISTA.htm "É importante que qualquer pessoa visite o dentista de seis em seis meses. Em caso de próteses, elas devem ser reavaliadas a cada dois anos, o que, geralmente, não acontece. Maioria da população não tem dentes naturais Com as próteses, o problema cresce ainda mais. A maioria das pessoas não tem o hábito de fazer a manutenção constante regularmente e, com o passar dos anos, elas vão ficando desadaptadas. "Muitos deixam até de usá-las e acabam ingerindo...

‘Quem anda no trilho é trem de ferro, sou água que corre entre pedras’ – Manoel de Barros

  Dirigido pelo cineasta vencedor do Oscar, Laurent Witz, ‘Cogs’ conta a história de um mundo construído em um sistema mecanizado que favorece apenas alguns. Segue dois personagens cujas vidas parecem predeterminadas por este sistema e as circunstâncias em que nasceram. O filme foi feito para o lançamento internacional da AIME, uma organização de caridade em missão para criar um mundo mais justo, criando igualdade no sistema educacional. O curta-animação ‘Cogs’ conta a história de dois meninos que se encontram, literalmente, em faixas separadas e pré-determinadas em suas vidas, e o drama depende do esforço para libertar-se dessas limitações impostas. “Andar sobre trilhos pode ser bom ou mau. Quando uma economia anda sobre trilhos parece que é bom. Quando os seres humanos andam sobre trilhos é mau sinal, é sinal de desumanização, de que a decisão transitou do homem para a engrenagem que construiu. Este cenário distópico assombra a literatura e o cinema ocidentais. Que fazer...

Chapéu Violeta - Mário Quintana

Aos 3 anos: Ela olha pra si mesma e vê uma rainha. Aos 8 anos: Ela olha para si e vê Cinderela. Aos 15 anos: Ela olha e vê uma freira horrorosa. Aos 20 anos: Ela olha e se vê muito gorda, muito magra, muito alta, muito baixa, muito liso, muito encaracolado, decide sair mas, vai sofrendo. Aos 30 anos: Ela olha pra si mesma e vê muito gorda, muito magra, muito alta, muitobaixa, muito liso muito encaracolado, mas decide que agora não tem tempo pra consertar então vai sair assim mesmo. Aos 40 anos: Ela se olha e se vê muito gorda, muito magra, muito alta, muito baixa, muito liso, muito encaracolado, mas diz: pelo menos eu sou uma boa pessoa e sai mesmo assim. Aos 50 anos: Ela olha pra si mesma e se vê como é. Sai e vai pra onde ela bem entender. Aos 60 anos: Ela se olha e lembra de todas as pessoas que não podem mais se olhar no espelho. Sai de casa e conquista o mundo. Aos 70 anos: Ela olha para si e vê sabedoria, risos, habilidades, sai para o mundo e aproveita a vida. Aos 80 an...

Se puder envelheça

Os poetas tem o dom de saber colocar em palavras coisas que sentimos e não sabemos explicar, quando se trata de velhice as opiniões divergem muito, e como poeta, talvez Oswaldo Montenegro te convença a olhar para o envelhecimento com outro olhar, mais gentil com sua história, mais feliz com seu presente. Leia: “A pergunta é, que dia a gente fica velho? Não vem dizer que ‘aos poucos’, colega, faz 5 minutos que eu tinha 17 anos e fui-me embora de Brasília, pra mim meu primeiro show foi ontem, e hoje eu tô na fila preferencial pra embarcar no avião. Tem um garoto dentro de mim que não foi avisado de que o tempo passou e tá louco pra ter um filho, e eu já tenho netos. Aconteceu de repente, o personagem do Kafka acordou incerto, eu acordei idoso, e olha que eu ando, corro, subo escadas e sonho como antes. Então o quê que mudou? Minha saúde e minha energia são as mesmas, então o quê que mudou? Bom, a unica coisa que eu sei que mudou mesmo foi o tal do ego, a gente vai descobrindo que não...