Por SERGIO C. FANJUL 09 OCT 2021 - 20:26 BRT
Filósofo
sul-coreano, uma das estrelas do pensamento atual, se aprofunda em sua cruzada
contra os ‘smartphones’. Acredita que se transformaram em uma ferramenta de
subjugação digital que cria viciados. Em uma entrevista exclusiva ao EL PAÍS,
Han afirma que é preciso domar o capitalismo, humanizá-lo
Com certa vertigem, o mundo
material, feito de átomos e moléculas, de coisas que podemos tocar e cheirar,
está se dissolvendo em um mundo de informação, de não-coisas, como observa o
filósofo alemão de origem coreana Byung-Chul Han. Não-coisas que, ainda assim, continuamos
desejando, comprando e vendendo, que continuam nos influenciando. O mundo
digital cada vez se hibridiza de modo mais notório com o que ainda consideramos
mundo real, ao ponto de confundirem-se entre si, fazendo a existência cada vez
mais intangível e fugaz. O último livro do pensador, Não-coisas. Quebras no mundo de hoje, se une a uma série de pequenos ensaios em que o
pensador sucesso de vendas (o chamaram de rockstar da filosofia) disseca minuciosamente as ansiedades que o capitalismo neoliberal nos produz.
Unindo citações frequentes aos grandes filósofos e elementos da cultura popular, os textos de Han transitam do que chamou de “a sociedade do cansaço”, em que vivemos esgotados e deprimidos pelas inapeláveis exigências da existência, à análise das novas formas de entretenimento que nos oferecem.
Da psicopolítica, que faz com que as pessoas
aceitem se render mansamente à sedução do sistema, ao desaparecimento do erotismo que Han credita ao narcisismo e exibicionismo atual, que proliferam, por
exemplo, nas redes sociais: a obsessão por si mesmo faz com que os outros
desapareçam e o mundo seja um reflexo de nossa pessoa. O pensador reivindica a
recuperação do contato íntimo com a cotidianidade – de fato, é sabido que ele
gosta de cultivar lentamente um jardim, trabalhos manuais, o silêncio. E se
rebela contra “o desaparecimento dos rituais” que faz com que a comunidade
desapareça e que nos transformemos em indivíduos perdidos em sociedades doentes
e cruéis.
Byung-Chul Han aceitou esta
entrevista como EL PAÍS, mas somente mediante um questionário por e-mail que
foi respondido em alemão pelo filósofo e posteriormente traduzido e editado.
PERGUNTA. Como é possível que em um
mundo obcecado pela hiperprodução eo hiperconsumo, ao mesmo tempo os objetos
vão se dissolvendo e vamos rumo a um mundo de não-coisas?
RESPOSTA. Há, sem
dúvida, uma hiperinflação de objetos que conduz a sua proliferação explosiva.
Mas se trata de objetos descartáveis com os quais não estabelecemos laços
afetivos. Hoje estamos obcecados não com as coisas, e sim com informações e
dados, ou seja, não-coisas. Hoje somos todos infômanos. Chegou a se falar de
datasexuais [pessoas que compilam e compartilham obsessivamente informação
sobre sua vida pessoal].
P. Nesse mundo que o senhor descreve,
de hiperconsumo e perda de laços, por que é importante ter “coisas queridas” e
estabelecer rituais?
R. As coisas são os
apoios que dão tranquilidade na vida. Hoje em dia estão em conjunto
obscurecidas pelas informações. O smartphone não é uma coisa. Eu o
caracterizo como o infômata que produz e processa informações. As informações
são todo o contrário aos apoios que dão tranquilidade à vida. Vivem do estímulo
da surpresa. Elas nos submergem em um turbilhão de atualidade. Também os rituais,
como arquiteturas temporais, dão estabilidade à vida. A pandemia destruiu essas
estruturas temporais. Pense no teletrabalho. Quando o tempo perde sua
estrutura, a depressão começa a nos afetar.
P. Em seu livro se estabelece que,
pela digitalização, nos transformaremos em homo ludens, focados
mais no lazer do que no trabalho. Mas, com a precarização e a destruição do
emprego, todos poderemos ter acesso a essa condição?
R. Falei de um
desemprego digital que não é determinado pela conjuntura. A digitalização
levará a um desemprego maciço. Esse desemprego representará um problema muito
sério no futuro. O futuro humano consistirá na renda básica e nos jogos de
computador? Um panorama desalentador. Com panem et circenses (pão
e circo) Juvenal se refere à sociedade romana em que a ação política não é
possível. As pessoas se mantêm contentes com alimentos gratuitos e jogos
espetaculares. A dominação total é aquela em que as pessoas só se dedicam a
jogar. A recente e hiperbólica série coreana da Netflix, Round 6, em que todo
mundo só se dedica ao jogo, aponta nessa direção.
P. Em que sentido?
R. Essas pessoas estão totalmente
endividadas e se entregam a esse jogo mortal que promete ganhos enormes. Round
6 representa um aspecto central do capitalismo em um formato extremo. Walter Benjamin já disse que o
capitalismo representa o primeiro caso de um culto que não é expiatório, e sim
nos endivida. No começo da digitalização se sonhava que ela substituiria o
trabalho pelo jogo. Na verdade, o capitalismo digital explora impiedosamente a
pulsão humana pelo jogo. Pense nas redes sociais, que incorporam elementos
lúdicos para provocar o vício nos usuários.
P. De fato, o smatphone nos prometia
certa liberdade... Não se transformou em uma longa corrente que nos aprisiona
onde quer que estejamos?
R. O smartphone é hoje um lugar de trabalho
digital e um confessionário digital. Todo dispositivo, toda técnica de
dominação gera artigos cultuados que são utilizados à subjugação. É assim que a
dominação se consolida. O smartphone é o artigo de culto da dominação digital.
Como aparelho de subjugação age como um rosário e suas contas; é assim que
mantemos o celular constantemente nas mãos. O like é o amém digital.
Continuamos nos confessando. Por decisão própria, nos desnudamos. Mas não
pedimos perdão, e sim que prestem atenção em nós.
P. Há quem tema que a internet das
coisas possa significar algo assim como a rebelião dos objetos contra o ser
humano.
R. Não exatamente. A smarthome [casa
inteligente] com coisas interconectadas representa uma prisão digital. A smartbed [cama
inteligente] com sensores prolonga a vigilância também durante as horas de
sono. A vigilância vai se impondo de maneira crescente e sub-reptícia na vida
cotidiana como se fosse o conveniente. As coisas informatizadas, ou seja, os
infômatas, se revelam como informadores eficientes que nos controlam e dirigem
constantemente.
P. O senhor descreveu como o
trabalho vai ganhando caráter de jogo, as redes sociais, paradoxalmente, nos
fazem sentir mais livres, o capitalismo nos seduz. O sistema conseguiu se meter
dentro de nós para nos dominar de uma maneira até prazerosa para nós mesmos?
R. Somente um regime repressivo
provoca a resistência. Pelo contrário, o regime neoliberal, que não oprime a liberdade, e sim
a explora, não enfrenta nenhuma resistência. Não é repressor, e sim sedutor. A
dominação se torna completa no momento em que se apresenta como a liberdade.
P. Por que, apesar da precariedade e
da desigualdade crescentes, dos riscos existenciais etc., o mundo cotidiano nos
países ocidentais parece tão bonito, hiperplanejado e otimista? Por que não
parece um filme distópico e cyberpunk?
R. O romance 1984 de George Orwell se transformou há pouco
tempo em um sucesso de vendas mundial. As pessoas têm a sensação de que algo
não anda bem com nossa zona de conforto digital. Mas nossa sociedade se parece
mais a Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley. Em 1984 as
pessoas são controladas pela ameaça de machucá-las. Em Admirável Mundo
Novo são controladas pela administração de prazer. O Estado distribui
uma droga chamada “soma” para que todo mundo se sinta feliz. Esse é nosso
futuro.
P. O senhor sugere que a Inteligência Artificial e
o big data não
são formas de conhecimento tão espantosas como nos fazem crer, e sim mais
“rudimentares”. Por que?
R. O big data dispõe
somente de uma forma muito primitiva de conhecimento, a saber, a correlação:
acontece A, então ocorre B. Não há nenhuma compreensão. A Inteligência
Artificial não pensa. A Inteligência Artificial não sente medo.
P. Blaise Pascal disse que a
grande tragédia do ser humano é que não pode ficar quieto sem fazer nada.
Vivemos em um culto à produtividade, até mesmo nesse tempo que chamamos
“livre”. O senhor o chamou, com grande sucesso, de a sociedade do cansaço. Nós
deveríamos nos fixar na recuperação do próprio tempo como um objetivo político?
R. A existência humana hoje está totalmente absorvida pela
atividade. Com isso se faz completamente explorável. A inatividade
volta a aparecer no sistema capitalista de dominação com incorporação de algo
externo. É chamado tempo de ócio. Como serve para se recuperar do trabalho,
permanece vinculado ao mesmo. Como derivada do trabalho constitui um elemento
funcional dentro da produção. Precisamos de uma política da inatividade. Isso
poderia servir para liberar o tempo das obrigações da produção e tornar
possível um tempo de ócio verdadeiro.
P. Como se combina uma
sociedade que tenta nos homogeneizar e eliminar as diferenças, com a crescente
vontade das pessoas em ser diferentes dos outros, de certo modo, únicas?
R. Todo mundo hoje quer ser
autêntico, ou seja, diferente dos outros. Dessa forma, estamos nos comparando o
tempo todo com os outros. É justamente essa comparação que nos faz todos
iguais. Ou seja: a obrigação de ser autênticos leva ao inferno dos iguais.
P. Precisamos de mais silêncio? Ficar
mais dispostos a escutar o outro?
R. Precisamos que a informação se cale. Caso
contrário, explorará nosso cérebro. Hoje entendemos o mundo através das
informações. Assim a vivência presencial se perde. Nós nos desconectamos do
mundo de modo crescente. Vamos perdendo o mundo. O mundo é mais do que a
informação. A tela é uma representação pobre do mundo. Giramos em círculo ao
redor de nós mesmos. O smartphone contribui decisivamente a essa percepção
pobre de mundo. Um sintoma fundamental da depressão é a ausência de mundo.
P. A depressão é um dos mais
alarmantes problemas de saúde contemporâneos. Como essa ausência do mundo
opera?
R. Na depressão perdemos a relação
com o mundo, com o outro. E nos afundamos em um ego difuso. Penso que a
digitalização, e com ela o smartphone, nos transformam em depressivos. Há
histórias de dentistas que contam que seus pacientes se aferram aos seus
telefones quando o tratamento é doloroso. Por que o fazem? Graças ao celular
sou consciente de mim mesmo. O celular me ajuda a ter a certeza de que vivo, de
que existo. Dessa forma nos aferramos ao celular em situações críticas, como o
tratamento dental. Eu lembro que quando era criança apertava a mão de minha mãe
no dentista. Hoje a mãe não dá a mão à criança, e sim o celular para que se
agarre a ele. A sustentação não vem dos outros, e sim de si mesmo. Isso nos
adoece. Temos que recuperar o outro.
P. Segundo o filósofo Fredric
Jameson é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. O
senhor imaginou algum modo de pós-capitalismo agora que o sistema parece em
decadência?
R. O capitalismo corresponde
realmente às estruturas instintivas do homem. Mas o homem não é só um ser
instintivo. Temos que domar, civilizar e humanizar o capitalismo. Isso também é
possível. A economia social de mercado é uma demonstração. Mas nossa economia
está entrando em uma nova época, a época da sustentabilidade.
P. O senhor se doutorou com uma
tese sobre Heidegger, que explorou as formas mais
abstratas de pensamento e cujos textos são muito obscuros até o profano. O
senhor, entretanto, consegue aplicar esse pensamento abstrato a assuntos que
qualquer um pode experimentar. A filosofia deve se ocupar mais do mundo em que
a maior parte da população vive?
R. Michel Foucault define a filosofia como uma
espécie de jornalismo radical, e se considera a si mesmo jornalista. Os
filósofos deveriam se ocupar sem rodeios do hoje, da atualidade. Nisso sigo
Foucault. Eu tento interpretar o hoje em pensamentos. Esses pensamentos são
justamente o que nos fazem livres.
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