Clint Eastwood merece aplausos vorazes porque aos 91 anos se comporta como se o tempo e a morte não existissem. É uma força da natureza que está além da razão
Por MANUEL VILAS em 27/de outubro de 20121
Houve alguns americanos capazes de
transferir a epopéia de um país inteiro para seus corpos físicos. A
América tem um jeito selvagem de se corporificar como heróis e heroínas, de Walt Whitman, fundador da
fraternidade americana , a Clint Eastwood, o homem mais
atlético e desafiador de um metro e sessenta e quatro na tela. A última
das discriminações que ainda existiam (visto que as de raça, sexo, política ou
religião foram combatidas com coragem), foi a da idade, e esta acaba de ser
derrubada por Eastwood no recente filme Cry Macho .Não
é a primeira vez que o cineasta constrói um filme no qual celebra e exalta a
velhice. Clint Eastwood tem 91 anos. E ele tem conseguido ficar na
frente das câmeras e continuar dando socos (bom, no Cry Macho ele só
dá um, muito original e elegante por sinal) e continuar se apaixonando, e aqui
o faz com um mexicano. O diretor daquela maravilha chamada Sem
Perdão não escondeu suas opiniões políticas, bastante inclassificáveis
e equivocadas, já que apóia o individualismo republicano ao defender o aborto
e condenar as armas, e duvido muito que tenha havido um cineasta mais crítico e
lúcido com o dimensão injusta e desumana da política internacional dos EUA do
que Clint Eastwood.
Eastwood é um exemplo daquele tão
americano que passou a denominar-se o homem moldado pela própria vontade, algo
de que sempre suspeitamos na Europa, porque não cumpria os determinismos da existência
marxista e ortega, mas que sempre vimos com inveja indescritível. Nós,
europeus, cada vez mais parecemos um fim de raça, sim, um fim de raça muito
educado e informado, e queremos que os americanos nos acompanhem em nosso
colapso melancólico, mas de repente Clint Eastwood aparece em cena para dizer
não, não, eles nos acompanharão na nossa forma calma e sensata de compreender a
arte e a vida.
Para o mundo intelectual sério e a
alta cultura, Clint Eastwood é muito desconfortável. Há muito tempo ele
não era esquecido ou subestimado, o que ele fez como ator, principalmente quando interpretou Dirty
Harry ou um atirador nos faroestes de Sergio
Leone, que sempre me pareceram obras-primas. Mas de filmes como Bird,Sua
figura como cineasta começou a decolar e a atingir voos altíssimos, e seu
cinema cresceu em sofisticação e solvência moral e política. Ele conseguiu
uma refundação do épico americano, baseado em personagens com vidas de
vulgaridade heróica, de um fracasso cheio de poesia e culpa. Ele transformou
seus heróis fracassados em uma espécie de anjos belos. Ele colocou o
dedo em todas as feridas da política e sempre teve sucesso. A complexidade
de sua figura contraria a ideia de criador que temos na Europa, pela simples
razão de que Clint Eastwood não é um intelectual ou moralista. Por
exemplo, sua condenação às guerras em seus filmes é sutil e distinta. A
Europa pode ter deixado de acreditar na força evidente e elementar da vida, que
é o que está no cinema de Eastwood. Na Europa, acreditamos mais nos
labirintos da ideologia do que na fúria da vida. Como é possível que um
homem bonito dos anos 50, um atirador da série B dos anos 60, um policial durão
dos anos 70, tenha se tornado o maior gênio cinematográfico dos últimos 30
anos? Talvez porque essa concepção passiva e historicista da arte, tão
pegajosa moralista, que tanto pesa sobre nós, europeus, não opere sobre
ele. Vem conversando, da saída norte-americana do
Afeganistão, da perda da liderança política e militar dos Estados Unidos no
mundo, ignorando algo de transcendental importância, pois é que essa liderança
repousa sobre uma colonização cultural muito poderosa que continua em vigor.
Um novo filme de Eastwood é sempre um
ciclone. Seus filmes estão além da opinião. É verdade que Cry
Macho tem imperfeições, mas o prodigioso é que não importa se as tem,
porque no cinema de Eastwood o grau de adesão à vida é superior a qualquer
consideração crítica em que nos esforçamos, por mais rigorosa que seja.
ser. Um cara de 91 anos que não acredita na velhice, que não acredita na
existência da velhice, é um triunfo da vida. Um cara de 91 anos que se
comporta como se o tempo não existisse e a morte fosse uma força da natureza
que está além da razão. Um cara de 91 anos que acredita em beleza e poesia
como o próprio Walt Whitman mereceria apenas um aplauso furioso, porque
aplaudir Eastwood é aplaudir o mistério da vida.
Fonte: https://elpais.com/opinion/2021-10-26/el-nonagenario-radiante.html Imagem - Google
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