VELHICE É DOENÇA? Uma visão internacional
Discutiremos o tema com Dr José Ricardo Jauregui, Presidente da International Association of Gerontology and Geriatrics
09/06 - 19h - ao vivo YouTube e Facebook
A nova edição de classificação Internacional de Doenças (CID 11), prevista para entrar em vigor 01/01/2022, a velhice é uma doença sob o código MG2A.
Anunciado há algum tempo, somente agora é que acordamos para as implicações desta decisão, transformar a velhice em uma doença.
A sigla CID é traduzida do original na
língua inglesa ICD, que são as iniciais de International Classification of
Diseases. Trata-se de uma tabela publicada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) com o
objetivo principal de padronização dos diagnósticos. A CID é utilizada na saúde
por seguradoras cujos reembolsos dependem da codificação de doenças; gestores
nacionais de programas; especialistas em coleta de dados; e outros
profissionais que acompanham o progresso global e determinam a alocação de
recursos na área. A CID11, adotada pela septuagésima segunda Assembleia Mundial
da Saúde em maio de 2019 e a entrar em vigor em 1º de janeiro de 2022,
apresenta mudanças, – inclusive éticas -, muito importantes para os próximos
anos. Mais de 200 cientistas e outros tantos especialistas de cerca de 35
países contribuíram para esta versão.
Atualmente, a CID é uma das principais ferramentas epidemiológicas no cotidiano dos médicos. Também monitora a incidência e a prevalência das enfermidades, apresentando o panorama das populações. Transformar a velhice em doença causou espanto entre os que atuam com o envelhecimento, tornando-se tema de uma live promovida pelo canal @oquerolanageronto. Os convidados, Alexandre Kalache e Carlos Uehara responderam às perguntas que nortearam a conversa: “Velhice então é uma doença? Um sintoma? Ou uma fase da vida? O processo de envelhecimento é uma doença? No que isso implica?”, que pode ser assistida aqui:
Qual seria tua resposta à pergunta que dá título a este artigo? E a de seus familiares e amigos? E dos colegas de trabalho? O que pensariam avós e pais?Para muitos de nós (não sei
se tantos assim na verdade), a velhice é uma etapa da existência e, portanto,
jamais pode ser considerada uma doença. A fundamentação teórica na Gerontologia
Social e a atuação profissional junto aos velhos e ao envelhecer pessoal,
corroboram com esta concepção. O Portal do Envelhecimento e o Espaço Longeviver
sempre defenderam esta posição. Tem sido uma batalha ao longo destes últimos 20
anos; nem se fala dos confrontos com os órgãos de fomento como a CAPES! Ao priorizarem estudos do envelhecimento com foco na
doença e não nos sujeitos que habitam esses corpos, valorizavam produções que
endossavam e endossam olhares reducionistas; a doença passa a ser o único
destino, e não um risco que se convive ao longo da vida.
Várias vezes nossos pares de
avaliação questionavam por que não migrávamos para o curso de medicina
existente dentro da instituição em que atuávamos. Enfim, aqui trazemos mais
lenha para esta fogueira que há muito tempo está queimando: a luta pelo poder
entre a Gerontologia recém-criada e a Medicina, um embate entre a
interdisciplinaridade e o campo fisiológico/patológico. A CID 11 oficializa
esta disputa de ideias, práticas e fortes interesses financeiros, confrontos
estes propositalmente invisíveis. Como já dizia Pierre Bourdieu (1983), todo
campo é um tabuleiro onde se travam lutas – para conservar ou transformar –
esse terreno de forças.
A inclusão da velhice como
doença, na Classificação Internacional de Doenças (CID 11), seria a derrocada
do confronto da Gerontologia com a Medicina?
Reafirmamos: a doença não é o
único destino das nossas velhices. Podemos “estar doente”, mas não sermos um
“ser doente”, tão somente porque ficamos velhos. Embora haja uma fartíssima
produção acadêmica enfocando doenças, decadências, perdas, incapacidades e
dependências, numa massa crescente de pessoas acima de 60 anos, construindo
narrativas a respeito de nossas velhices, insistimos que elas fazem parte da
existência humana, desde que nascemos.
Vivemos em um sistema
intolerante ao diferente, priorizando o trabalho e o consumo. O que fazer com
um número crescente de velhos que não servem mais para o sistema produtivo?
Para que investir nesses corpos, vistos como doentes? Repor a mão de obra passa
a ser o objetivo premente.
Enfim, estão em jogo
diferentes concepções e interesses, além dos explicitados na elaboração da CID
11. Aproveitando a onda, jovens milionários empreendedores interessados em
financiar o sonho da juventude eterna, manejam uma indústria ávida por este
próspero consumo. Reivindicam a “cura da velhice” e/ou o antienvelhecimento,
arregimentam mais e mais adeptos para suas fileiras. Um dos exemplos mais
eloquentes desse grupo é o biogerontologista inglês, Aubrey de Grey que esteve
no Brasil e publicou o livro “O fim do Envelhecimento”
(NTZ, 2019), um clássico do movimento mundial antienvelhecimento. Recentemente
David Sinclair divulgou um vídeo (veja a seguir) em que aponta
acriticamente para a longevidade da humanidade. Isto significará vivermos mais
tempo, mas em piores condições de saúde e sozinhos ou em instituições nada
acolhedoras!?
Estes representantes de uma cultura moderna, associada à renovação jovem, têm como virtudes a aspiração social, o mito da eterna saúde, ofuscando o também eterno medo de envelhecer. São estas visões que estão à frente de uma proposta científica com altos investimentos em que prometem reverter os “danos” do envelhecimento, atraindo indústrias farmacêuticas ante a perspectiva de lucros incalculáveis.
Cenários da velhice
Aproveitamos para trazer à
este debate, Harry
S. Moody. Já em 1995, faz várias perguntas inquietantes, entre elas: A velhice
tem algum significado? O prolongamento da vida realmente traz benefícios, seja
para o indivíduo ou para a sociedade? Ou, pelo contrário, os recentes
progressos sobre a expectativa de vida não foram apenas o prolongamento da
decrepitude, a invalidez e uma existência sem sentido?
Através destas questões
apresenta quatro diferentes cenários de
uma sociedade em envelhecimento.
O primeiro, o prolongamento
de comorbidades, parte do princípio de que a expectativa de vida tem crescido
entre as pessoas mais velhas, resultando em períodos longos com doenças,
elevando os custos do Estado. O segundo, aponta para a redução das doenças, em
uma velhice como extensão da meia-idade, incentivada por políticas de
prevenção, como a política do Envelhecimento Ativo. Ambos os cenários partem da
aceitação dos limites máximos do ciclo humano de vida, ou seja, 120 anos.
Já o terceiro cenário, chamado
por Moody, de prolongevidade ou extensão da vida, parte do pressuposto que o
ser humano pode ultrapassar o limite do ciclo vital até agora reconhecido e,
portanto, o envelhecimento passará a ser visto como uma doença que deve ser
conquistada e curada. Nesse cenário, os investimentos recaem em terapias
genéticas, implicando na transferência de recursos para as “tecnologias da
doença” em favor da investigação biomédica, a fim de curar doenças como artrite
ou demência, para que não se retorne ao primeiro cenário. Retomando Bourdieu,
tudo indica que os defensores deste cenário estão vencendo a luta entre os
campos!
O quarto cenário, chamado por
Moody de recuperação da vida-mundo, supõe que o significado da vida esteja na
aceitação da finitude humana, mas a partir de uma ação coletiva e não por uma
decisão individual. Explica-se: se no primeiro cenário as pessoas
individualmente optam pelos cuidados paliativos ao invés do prolongamento de
doenças, como aceitação de sua condição finita, neste outro cenário seria o
Estado a tomar essa decisão ante uma doença incurável e com altos custos
coletivos.
A premissa de que o
longeviver é possível e/ou desejável, exige gestão e alocação de recursos, seja
em nível individual, familiar, empresarial, estatal e jurídico. A qualidade de
vida, o envelhecimento ativo, a sobrevivência indefinida e a aceitação coletiva
dos limites trazem consequências muito diferentes para a alocação de recursos
já escassos, afinal, uma vida longa terá que enfrentar diferentes eleições
expondo concepções sobre o significado da última etapa da vida. Quem aposta
nesse cenário sabe que o mercado é propício para a “velhice como doença”
(General Symptoms: MG2A Old age).
Polemizamos este debate
trazendo Canguilhem. No
livro O normal e o patológico,
resultado de sua tese defendida em 1943, nos diz que a velhice não deve ser
julgada pelas normas de outras fases da vida e que, embora a velhice envolva
também uma redução na margem de tolerância aos desafios externos, ela não é, portanto,
sinônimo de doença.
Afinal, a quem interessa a
velhice como doença?
Referências
BOURDIEU, Pierre. Campo
de poder, campo intelectual. Buenos Aires: Folios,
1983.
CANGUILHEM, G. O
normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2002.
GREY, Aubrey de. O
fim do Envelhecimento: os avanços que poderiam reverter o
envelhecimento humano durante nossa vida. Valinhos: NTZ, 2019.
LOPES, Ruth Gelehrter da Costa e CÔRTE, Beltrina. Longeviver, Políticas e
Mercado: subsídios para profissionais, educadores e pesquisadores (Orgs.). São
Paulo: Portal Edições/PUC-SP, 2019.
MOODY, H. Ageing, Meaningand the Allocation of Resources. Ageing and Society,
15(2), pp. 163-184, 1995. doi:10.1017/S0144686X0000235X.
(*) Ruth Gelehrter da Costa Lopes – Graduada em Psicologia,
PUC-SP. Mestrado em Psicologia Social, PUC-SP. Doutora em Saúde Pública, USP.
Professora no Curso de Psicologia da Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde
(FACHS), da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Supervisora na
Clínica Psicológica “Ana Maria Popovic”. Líder do Núcleo de Estudo e Pesquisa
do Envelhecimento, PUC-SP. E-mail: ruthgclopes@gmail.com
Fonte: https://www.portaldoenvelhecimento.com.br/a-velhice-e-uma-doenca/
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