Tratar velhice como doença é erro que alimenta utopia da juventude eterna
Quando morre uma figura famosa, a causa de morte ganha proeminência. Foi assim quando Ronald Reagan e Margaret Thatcher morreram de doença de Alzheimer; Greta Garbo e Ingrid Bergman de câncer da mama; George Bush e Muhammad Ali de doença de Parkinson; e Rock Hudson e Cazuza de Aids.
Há muitos outros exemplos. Ainda que de forma involuntária, eles serviram de alerta para doenças de importância até então pouco reconhecida e a humanidade lhes agradece postumamente.
No último mês de abril, faleceu o Duque de Edimburgo. Declaradamente, não de uma doença e sim de "velhice". Não importou que meses antes ele tivesse sido hospitalizado por problemas cardiovasculares: depois de morrer, ele ingressou no rol das mortes por "velhice".
É comum no dia a dia dizer que alguém morreu por ser muito idosa. De velhice. É até compreensível. Mas quando o rótulo alimenta estatísticas, torna-se preocupante.
É bem diferente morrer “de velho” do que de enfermidades associadas ao envelhecimento, como são a maioria delas. No Brasil, cerca de 75% das mortes são em decorrência das doenças crônicas não transmissíveis, e mais de 70% das mortes se dão após os 60 anos.
Se o código “velhice” passa a ser adotado, nós rapidamente perderemos a real dimensão que tais doenças têm para a adoção de políticas públicas em resposta ao rápido envelhecimento global.
Ao invés de darmos proeminência a enfermidades que podem ser prevenidas, tratadas ou postergadas, correremos o risco de tê-las mascaradas por algo impreciso e mal definido. Afinal, o que é "velhice"? Para a OMS, ela começa aos 60. Aonde chegaríamos em 10, 20 anos constatando que um número crescente de mortes poderia receber um código tão impreciso.
Comparações internacionais se tornariam distorcidas. Um país onde morrer de velhice fosse mais frequente que por doenças com nome e apelido teria serviços de saúde melhores? Seria também impossível ter uma visão longitudinal em um mesmo país —estaria evoluindo? Como medir o peso verdadeiro de doenças que se tornam mais frequentes com o envelhecimento, exigindo intervenções eficazes, baseadas em evidência?
Face a uma verdadeira epidemia de diagnósticos de "velhice", quais políticas públicas seriam propostas e implementadas? Do ponto de vista funcionalista, em que o valor dos indivíduos provém da função e seu trabalho, não é difícil imaginar soluções mágicas que surgiriam.
Estamos, no entanto, na iminência de oficializar essa aberração com a entrada em vigor da 11ª versão da Classificação Internacional de Doenças. Ela é usada por profissionais da saúde como referência não só para os atestados de óbito, mas quaisquer intervenções na área da saúde.
Os efeitos nefastos não param aí. Há imensos interesses econômicos, ligados à indústria "anti-ageing". Os últimos dados a que tivemos acesso, de 2014, mostram que somente naquele ano nos EUA ela movimentou US$ 37 bilhões.
O apelo de beber da fonte da eterna juventude foi sempre tão irresistível como fútil. E em nosso país, hedonista e idadista, tal apelo é ainda maior.
A classificação da "velhice" como achado clínico ou sintoma alimentará ainda mais os adeptos do antienvelhecimento. A comercialização da “cura da velhice” será impulsionada e os lucros dos vendedores de sonhos aumentarão.
Se o código MG2A (velhice) for realmente endossado estaremos diante de uma avalanche de velhos morrendo de "velhice". E incalculáveis recursos canalizados para a alimentar a velha utopia de juventude para sempre.
Nós, coautores desta coluna, queremos sim morrer velhos —mas não de "velhice".
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