Coletivo cívico francês deixa boa lição diante dos ataques aos mais velhos na pandemia
A pandemia da Covid-19 fomentou várias
reflexões sobre a velhice, ora com visões preconceituosas, ora com um certo
paternalismo complacente. Dentre essas visões, sem dúvida, uma das mais
desafiadoras foi a antecipada, na França, pelo coletivo Vieilles et pas Sages
(velhas, mas não submissas, em tradução livre), que teve origem em um caso de
idosismo (“ageism”) que se transformou em um fato político internacional.
Na manhã de 23 de março de 2019, a
aposentada Geneviève Legay, então vivendo a total independência e autonomia aos
seus 73 anos, deixou seu apartamento no subúrbio de Nice, onde mora sozinha,
para seu principal compromisso do dia. Colocou no banco de trás de seu carro
uma bandeira pintada com as cores de um arco-íris, onde se lia bem grande a
palavra paz. Dirigiu até a praça Garibaldi, no centro da cidade, para se juntar
aos conhecidos coletes amarelos.
As manifestações estavam proibidas
naquele momento, mas, vestidos com o colete usado pelos profissionais que
precisam sair da invisibilidade por questão de segurança, eles continuavam
a peitar o presidente Emmanuel Macron.
Geneviève Legai (73) agita uma bandeira colorida durante o protesto dos coletes amarelos em Nice (França), em março de 2019, contras as políticas do governo de Emmanuel Macron. Valery Hache/AFP
Geneviève não estava fazendo nada de mais. Militante da Associação pela Tributação das Transações Financeiras para Ajuda aos Cidadãos (Attac) e ativista feminista há 45 anos, estava apenas indo para mais uma de tantas manifestações que engrossara em sua vida.
Geneviève Legai (73) caida no chão em protesto em Nice, (França) em março de 2019 após ser golpeada com cassetetes e escudo da polícia. Valery Hache/AFPLogo no início do ato, Geneviève foi abordada pelo canal de televisão CNews. O repórter lembra que as manifestações estão proibidas e que os policiais ameaçavam usar a força. “Eles são seres humanos como todos nós, eu vou tocá-los pelo coração”, respondeu Geneviève. “Eu trago uma bandeira onde está escrito paz.”
O repórter questionou se ela não
tinha medo, pois àquela altura do 19º sábado de manifestações, os atos já
haviam se tornado bastante violentos. “Medo? Não. Eu tenho 73 anos! O que pode
me acontecer?” E completou que tinha compromisso ético com os filhos e netos.
Minutos depois, Geneviève estava
cheia de sangue na cabeça e caída no chão. Um cassetete alcançou-lhe na altura
da orelha direita. Outro policial bateu com o escudo em seu corpo, ainda forte
à época. Um enxame de fotógrafos e cinegrafistas procurava captar sua dor por
entre as pernas do cerco de soldados em torno daquela senhora de cabelos
brancos ainda agarrada a sua bandeira colorida.
Eu tinha
uma bandeira da paz e acordei no pronto-socorro”, disse mais tarde, quando já
havia descoberto que perdera boa parte da audição, tivera a visão do olho
direito prejudicada, fraturara o osso occipital e quebrara o cóccix.
Diante da imensa repercussão, uma
prova do uso desproporcional das “forças de ordem”, Macron foi questionado pelo
jornal Nice Matin e respondeu com
uma frase reveladora da imagem que se tem da velhice. Negou que
Geneviève tenha estado em confronto com a polícia e procurou atribuir os ferimentos
a uma queda.
“Quando somos frágeis, quando
podemos ser empurrados, não vamos a locais que se definem como proibidos e não
nos colocamos em situações como esta.” E completou: “Desejo seu pronto
reestabelecimento e, talvez, alguma sabedoria”. Ele acreditou que havia
colocado Geneviève em seu devido lugar e encerrado a “história da velhinha
ferida em Nice”, mas o caso
estava apenas no começo.
A reação de Geneviève foi imediata e
deu origem ao Vieilles et pas Sages. Enquanto Macron apelou para uma velhice
com mais sabedoria e mais sensata, Geneviève surpreendeu com uma insurgência
para continuar sendo quem ela sempre foi —talvez, a principal luta do ser
humano conforme passam os anos.
O objetivo do Vieilles
et pas Sages, com 1,8 milhão de seguidores em uma rede social, pode
ser resumido nos atos de sua fundadora depois do episódio. O idosismo de Macron
transformou Geneviève em uma forte voz crítica da oposição ao presidente, hoje
conhecida internacionalmente devido a ampla cobertura da imprensa estrangeira.
Sua primeira reação foi ler para uma
horda de repórteres, ainda em cadeira de rodas, uma carta aberta a Macron
denunciando o projeto “neoliberal” do governo, a favor dos mais ricos, e a
destruição da seguridade social.
Muitos eleitores de Macron
recomendaram a ela um pouco mais de tricô na calma de seu lar. “É chocante,
porque isso quer dizer que uma pessoa de 73 anos deve ficar em casa fazendo
tricô, tarefas domésticas. Eu sou uma cidadã. Eu sou uma militante há 45 anos.
Eu reivindico. Eu posso fazer minhas tarefas domésticas e estar nas ruas para
manifestar por meus direitos e pelos direitos de outros.”
Ainda de muletas, Geneviève se
deixou acompanhar por uma equipe de TV em um ato que revela bem o espírito do
coletivo Vieilles et pas Sages. Ela tricotou a miniatura de uma bandeira como a
que empunhava no dia em que foi atacada e foi até a agência de correios enviar
o “presente” a Macron.
O constrangimento foi maior quando
os relatórios da investigação desmentiram o presidente e provaram os ataques
dos policiais pelas costas. “Nós não estamos mais em um Estado democrático de
Direito. A resposta do senhor Macron foi autoritária”, disse ela.
O ativismo do tricô, como poderíamos chamar a militância dessa
velhice insubmissa, é uma novidade louvável. Neste momento da pandemia, quando vozes
políticas e até jornalistas defendem o genocídio de idosos diante do colapso do
sistema de saúde, o idosismo inibe uma reação mais efetiva e limita
até mesmo o impacto dos protestos de associações civis de defesa dos direitos
da pessoa idosa. Portanto, é importante analisá-lo com mais profundidade.
Apesar de o Brasil assistir a uma campanha antivacina por parte
do presidente da República, tão logo a injeção contra o Sars-Cov-2 começou a
ser aplicada, viralizaram
imagens de idosos felizes agradecendo o imunizante ou saldando
o SUS (Sistema Único de Saúde). Essa atitude suscitou comentários de locutores
e âncoras de TV: “É isso aí, seu Fulano”, “muito bom, dona sicrana”, versões de
um paternalista “força, vovô!”.
Embora em tom de apoio, essas reações demonstram, mesmo que de
maneira subjacente, uma certa surpresa por esses idosos reagirem com
resistência ao negacionismo oficial. O ato de se deixar vacinar, em última
análise, foi interpretado como uma insubmissão extranatural.
Essas reações revelam uma visão de parte da sociedade de que os idosos seriam sempre obedientes. O Vieilles et pas Sages desafia a noção de que a vulnerabilidade se opõe à resistência.
As imagens do envelhecimento bem-sucedido presentes no senso comum e na gerontologia (ciência que estuda a velhice), assim como a associação convencional feita entre o avanço da idade e a sabedoria, criam barreiras difíceis de serem transpostas para que a velhice possa entrar no rol das questões centrais que demandam mobilização política.
O dever de um envelhecimento bem-sucedido impede que a retórica da indignação ganhe o conteúdo emocional próprio das críticas às formas de opressão.
Até que ponto essas convenções impedem uma reação como a de Geneviève quando idosos brasileiros ouvem do próprio presidente que eles irão morrer de Covid e isso é aceitável? Ou que idosos ouçam de maneira passiva uma deputada defender uma “solução final” em nome da sabedoria de abrirem mão de suas vidas para salvar netos em caso de recursos escassos em meio ao colapso de saúde?
Os primeiros estudos que fundaram a gerontologia tendiam a representar o avanço da idade como um processo de perdas, e essa representação constituiu a velhice como uma preocupação social e política.
Essa visão legitimou a conquista de direitos sociais que levaram à universalização da aposentadoria, ao conjunto de leis protetivas e à inclusão do envelhecimento na agenda da ONU. No Brasil, o marco legal de proteção social foi acatado pela Constituição de 1988 e pelo Estatuto do Idoso (lei 10.741/2003).
A partir dessa regulação, a visão da velhice como uma experiência marcada pelo abandono e pela solidão foi substituída pela imagem dos idosos ativos, capazes de oferecer respostas criativas que redefinam a experiência do envelhecimento. Novas formas de sociabilidade e de lazer desenhariam essa etapa da vida, reciclando identidades anteriores.
O conceito de um envelhecimento ativo passa a marcar as políticas sociais. A ideia, entretanto, tem recebido outros significados quando a sabedoria se combina com a resiliência, que se torna algo amplamente receitado no mundo de hoje.
A socióloga Sarah Bracke mostra que o interesse contemporâneo pela resiliência é um efeito do neoliberalismo, não apenas em termos de economia política, mas também como um código moral. A combinação da resiliência com a sabedoria torna difícil, se não impossível, a luta contra a discriminação dos velhos, porque a fúria e a raiva tendem a ser malvistas a partir de uma determinada idade.
Isso foi o que ocorreu no início da pandemia, quando idosos foram atacados nas ruas e em supermercados, sob o argumento de que, vistos como “grupo de risco”, só eles deveriam adotar um comportamento “sábio” de ficar em casa.
A sabedoria combinada com a resiliência é associada às virtudes do domínio dos sentimentos e emoções. Como argumenta a socióloga Kathleen Woodward, as emoções são elementos importantes na produção de significados e valores e na definição e implementação de políticas sociais. Como pensar nos movimentos de protesto sem levar em conta o sentimento de raiva contra as formas de opressão e injustiças?
Em outro artigo, destacamos que “a indignação necessária às lutas políticas certamente requer a dose de raiva que marca e que marcou cada uma das diferentes expressões do movimento feminista e de outros movimentos libertários. A energia política e o engajamento envolvem fervor, o que é o oposto aos significados convencionalmente associados à sabedoria”. Ou, como diria Woodward, envolvem uma “raiva sábia” capaz de criar uma retórica promotora do convencimento.
A indignação vocalizada pelos velhos nem sempre é percebida como indicador de insubmissão e incentivo à luta. Muitas vezes é vista como uma irritabilidade pelo avanço da idade. Outras vezes, é atribuída a uma vida mal-administrada —um sintoma do consumidor que falhou porque não soube se envolver em atividades motivadoras, não soube adotar estilos de vida adequados e agora lamuria oportunidades perdidas.
A crítica social passa a ser vista como um sinal da depressão e, portanto, só remédios podem restabelecer o equilíbrio que se imagina próprio da velhice idealizada. A “raiva sábia”, capaz de promover articulações políticas, é tolhida.
Em combate ao pronunciamento do presidente francês, é bom lembrar, como destacou Judith Butler, que a vulnerabilidade, a sensatez e a sabedoria não podem ser o oposto de resistência, como o Vieilles et pas Sages vem mostrando à sociedade. Como elegantemente nos disse Woodward, é urgente darmos uma “moratória contra a sabedoria” na luta por políticas sociais para uma velhice (ainda bem!) insubmissa.
Fonte: www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2021/04/
Jorge Felix foi entrevistado pelo grupo O que rola na geronto e aqui está a conversa: Muito Boa. A pergunta da camada é uma boa dica.
Você se conforma com tudo o que dizem sobre os velhos e a velhice ?Como você age frente aos seus direitos violados?"
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