Liderada por mulheres, agricultura urbana cresce no Rio de Janeiro, contribuindo com o meio ambiente e a segurança alimentar
Concentrando 39% de toda a população do estado, cerca de 6,7 milhões de habitantes, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com extensão territorial de 1.197,463 km² e geografia marcada por três maciços – da Tijuca, da Pedra Branca e do Gericinó-Mendanha, além de 84 km de orla, o Rio de Janeiro é uma das metrópoles mundiais que se destaca também pela sua produção agrícola. A chamada agricultura carioca urbana, ou agroecológica, é forte e resistente, apesar de todas as dificuldades que o setor enfrenta. Quem garante são as lideranças dos próprios agricultores.Ainda pelo sétimo capítulo da série de reportagens sobre sustentabilidade, arquitetura, urbanismo e paisagismo, iniciada em junho – mês dedicado mundialmente ao meio ambiente –, o Rio Capital Mundial da Arquitetura convida hoje para falar sobre o assunto, a agricultora Giovanna Berti. Ela é conselheira do Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural e membro do Grupo de Agricultores das Vargens e da Rede Carioca de Agricultura Urbana (CAU).
Giovanna, que também integra a Teia de Solidariedade da Zona Oeste, uma articulação com vários grupos de produtores para o enfrentamento à Covid-19, destaca as conquistas das famílias que tiram da terra suas lavouras de subsistências e sobre os desafios de quem cultiva canteiros de frutas, legumes e verduras, em meio à chamada “selva de pedra” .
Giovanna Berti, agricultora: “Na crise do novo coronavírus, os circuitos curtos de comercialização alimentar têm demonstrado sua importância”
Sempre ligada a movimentos em defesa da moradia digna e atuação de lavradores urbanos, visando a soberania e a independência deles, Giovanna Berti, que se dedica também ao artesanato e é mãe de três filhos, lembra que cultivar hortifrútis na cidade e em sua periferia, é, sobretudo, sinônimo de saúde, educação e segurança alimentar. E garante: a agricultura urbana e peri-urbana no município é forte. E com tendência de crescimento, diante da pandemia da Covid-19, que está obrigando a humanidade a se adequar a novos modos de vida, inclusive em relação à produção de alimentos.
– A luta é árdua, mas não tem sido em vão. A agricultura urbana no Rio é forte, sim. E muito. Hoje, oficialmente, existem cerca 1.500 agricultores (número do último levantamento da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural – Emater-Rio), ditos oficiais (cadastrados junto ao Ministério da Agricultura), que se dedicam ao comércio de produtos rurais, cadastrados no município. Mas há uma infinidade de famílias nas regiões urbanas e periurbanas, se dedicando cada vez mais à produção de alimentos para a própria sobrevivência, em hortas comunitárias, coletivas, e até nos próprios quintais. Esse perfil histórico é uma característica que vem se aprimorando -, testemunha Giovanna.
A agricultura orgânica e agroecológica, conforme relatório da Emater, tem registrado aumento em torno de 15% a 25 % ao ano. Isso demonstra que o sistema, tanto orgânico, que não utiliza defensivos agrícolas, e agroecológico, que, além de não usar produtos tóxicos nas plantações, também defende a relação trabalho-plantadores sem exploração predatória da terra e da mão-de-obra, especialmente feminina, nas lavouras, vem se consolidando. As estatísticas abrem perspectivas de geração de emprego e renda de forma sustentável no cenário do setor primário da economia. Para Giovanna, o que mais impressiona é a força das mulheres à frente da produção de legumes e folhosas, sobretudo na Zona Oeste.
Mutirão Tira Caqui, que acontece no Maciço da Pedra Branca num ano e em Rio da Prata, no outro. Foto: Arquivo Pessoal/ Giovanna Berti
Estudo inédito de campo feito em 2019 pela pesquisadora Caren Freitas de Lima mostrou que 70% dos agricultores da Capital são mulheres, sendo que a maioria delas (79%) são ligadas à Rede CAU -, ressalta Giovanna. Caren é graduada em economia pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), especialista em Planejamento Urbano e Regional pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ), e mestre pelo Programa de Pós Graduação em Desenvolvimento Territorial e Políticas Públicas pela UFRRJ).
Pelo levantamento de Caren, 42% dos plantadores orgânicos do Rio se dedicam à chamada agricultura de quintal e 11%, à de coletivos e movimentos urbanos, contra 47% da forma tradicional. Perfis não recenseados pelo IBGE também foram alvos da pesquisa de Caren e apontaram que 73% dos agricultores urbanos da cidade plantam em seus próprios quintais; 18% em hortas coletivas e somente 9% de forma mais empresarial, destinada ao comércio. O estudo revelou outro aspecto econômico, comprovando que viver do plantio ainda é um ato de sacrifício para as famílias. Apenas 20% deles conseguem uma renda superior a cinco salários mínimos. A maioria (56%) não recebe mais que R$ 1,5 mil por mês com suas produções.
Há muitas famílias que estão vivendo dessa atividade financeiramente. Mas a maioria planta para complementar ou suprir totalmente sua alimentação no dia a dia. O Rio de Janeiro ainda tem esse contato com a agricultura e na crise do novo coronavírus, os circuitos curtos de comercialização alimentar têm demonstrado sua importância na garantia da renda dos agricultores e no fornecimento de alimentos para as cidades -, comenta Giovanna.
Mais saúde e qualidade de vida e menos desperdícios de alimentos
Em maio, durante o 1º Fórum Regional das Cidades Latino-Americanas Signatárias do Pacto de Milão sobre Política de Alimentação Urbana, no Rio de Janeiro, que é um dos países que assinaram o chamado Pacto de Milão, foi reforçado que uma das diretrizes do documento é a soma de esforços para a redução das distâncias entre os alimentos e a mesa do consumidor.
Na época, o governo municipal salientou que vem buscando reforçar programas como o Hortas Cariocas (detalhado ontem pelo RCMA) e o dos Restaurantes Populares, por exemplo. Ambos são alinhados com a agenda 2030 das Nações Unidas, que aposta na agricultura sustentável, saúde e bem-estar, redução das desigualdades e nas cidades sustentáveis.
Na ocasião, o representante da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), Rafael Zavalla, elogiou a disposição das autoridades e agricultores do município, para encontrarem, através da agricultura familiar, caminhos para sistemas alimentares mais sustentáveis.
Esse é o grande desafio das cidades. E o Rio de Janeiro é um grande exemplo de fornecimento de alimentos provenientes da agricultura familiar -, afirmou ele à imprensa, comentando que dos 17 objetivos do desenvolvimento sustentável (ODS) da ONU, “pelo menos dez estão implicados em processos alimentares, de saúde, de equidade de gênero, de processos curtos de mercados, sistemas sustentáveis e mudanças climáticas”.
Giovanna Berti diz que o Pacto de Milão é uma oportunidade ímpar para que os cidadãos em geral se conscientizem da importância dos alimentos chegarem mais rápidos, frescos e saudáveis às mesas.
– A redução da distância desse sistema evita diversos problemas de saúde e ambientais. Hortifrútis colhidos nas hortas comunitárias, nos quintais, geram mais segurança alimentar, elevando a qualidade de vida e saúde das pessoas -, explica.
Esse processo ajuda também a reduzir, por sua vez, a poluição ambiental, com menos queima de combustíveis nas estradas, por exemplo, necessários hoje em dia para trazer a maior parte dos alimentos de pontos longínquos das áreas rurais até entrepostos e, finalmente, às residências.
– Alimentos mais perto requerem também menos gastos com refrigeração e conservam a biodiversidade, mitigando impactos das mudanças climáticas -, explica. Calcula-se que cerca de 10% da emissão de gases do efeito estufa dos países desenvolvidos sejam derivados do transporte de alimentos desperdiçados e nunca consumidos, do campo para as cidades.
Plantação no alto do Morro da Formiga, na Tijuca, é um dos sucessos da agricultura urbana carioca. Foto: Marco Antônio Rezende/ Prefeitura do Rio
Sistema alimentar precisa passar a ser prioridade nas políticas públicas
Em fevereiro deste ano, conforme o RCMA detalhou na sexta-feira, a Wageningen University & Research (WUR) – uma universidade pública de pesquisa da Holanda, localizada em uma região conhecida como Vale dos Alimentos – revelou um dado preocupante: mais da metade da população do planeta está jogando alimentos que produz literalmente fora. Em 2011, a FAO já havia alertado que pelo menos um terço dos alimentos cultivados para o consumo humano era desperdiçado, especialmente por causa das longas distâncias dos pontos de produções rurais.
A representante do Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural frisa que como a questão alimentar é uma das que mais impactam o meio ambiente e a saúde das pessoas, é preciso que as cidades, de modo em geral, não só o Rio de Janeiro, passem a planejar seus futuros, priorizando essa cadeia alimentar, com ênfase à segurança no setor.
– É preciso que os municípios coloquem essa questão em primeiro lugar, sempre. Seja em seus projetos de lei, em seus planos diretores, em suas pautas de discussões, em suas tomadas de decisões, enfim. É o futuro dos nossos filhos e netos, do próprio planeta, que está em jogo. O alimento é aquilo nos une, que nos fortalece, que nos guia, que nos mantêm vivos, que garante direitos humanos básicos, que fortalece a economia e a soberania de um país, independente da classe social -, argumenta.
Vocação para plantio vem desde o século passado
Giovanna Berti lembra que a tradição de se cultivar a terra para o plantio de alimentos no Rio é tradicional. Ela menciona que a cidade já foi quase que totalmente abastecida no passado pela atividade agrícola. Boa parte dos saberes foi herdada da antiga Colônia Agrícola Japonesa em Santa Cruz, na Zona Oeste. Até hoje, mais de um século depois que 36 famílias japonesas se instalaram naquele bairro, a população local ainda se beneficia do legado deixado por elas e seus remanescentes. São marcas que vão muito mais além do dos valores agrícolas, com reflexos positivos também na educação e saúde.
– Essa vocação nunca será perdida, pois há muitas famílias dedicadas à essa verdadeira tradição, que se espalha por todas as regiões do município, embora a Zona Oeste, até mesmo pela extensão territorial, mantenha a presença mais forte de agricultores -, diz.
Dados da Emater, de 2019, constatam que a maioria dos lavradores urbanos (975) do Rio, se concentra na chamada Área de Planejamento (AP) 5 , que compreende localidades das regiões de Bangu, Realengo, Campo Grande, Santa Cruz e Guaratiba; na AP4 (380) , entre os territórios de Jacarepaguá, Cidade de Deus e Barra da Tijuca; na AP3 (115), entre Inhaúma, Madureira, Penha, Vigário Geral, Anchieta, Pavuna, Irajá, Méier, Ramos e Ilha do Governador; e AP2 (35), entre Tijuca, Vila Isabel e Rocinha, em São Conrado.
As hortas urbanas, individuais ou coletivas, proporcionam uma série de benefícios para as pessoas e para as cidades. Veja alguns:
- Fazem chegar alimentos mais frescos e livres de agrotóxicos à mesa;
- Garantem a procedência dos produtos;
- Promovem exercícios físicos e mentais;
- Reduzem o estresse, que gera doenças como a depressão;
- Reforçam laços de amizade, aproximando vizinhos e parentes;
- Estimulam práticas como a reciclagem e compostagem;
- Envolvem tomadas de decisões compartilhadas e organizadas;
- Valorizam imóveis e, consequentemente, regiões inteiras;
- Combatem ilhas de calor;
- Aumentam refúgios para a biodiversidade, ajudando no equilíbrio do meio ambiente;
- Eliminam espaços urbanos ociosos, evitando que se transformem em lixões, por exemplo;
- Auxiliam no escoamento de água das chuvas, prevenindo enchentes;
- Geram renda e emprego.
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