O envolvimento dela com o ser humano vem de longe – de berço, da mais tenra infância, observando o exemplo dos pais, militantes das Comunidades Eclesiais de Base da região do ABC Paulista. Maria Aparecida de Souza Rosa parece que foi talhada para ser assistente social, no sentido mais amplo da função. Ela coloca a mão na massa quando precisa, domina legislação, se empenha a fundo para dar conta de todos os que necessitam de amparo, acolhimento, justiça. Maria Lígia Mathias Pagenotto
É incansável em suas convicções. Formada em enfermagem, especializou-se ainda em psicopedagogia e em saúde pública. No estudo da gerontologia, tratou de uma questão crucial: a ausência de moradias dignas para idosos, a possibilidade de, simplesmente, permitir que façam suas escolhas sobre onde, com quem e como morar.
Intitulado “Moradia, a Pasárgada dos Velhos?”, Maria Aparecida defendeu seu mestrado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) em maio de 2011, tendo como orientadora a professora doutora Suzana Aparecida da Rocha Medeiros, assistente social como ela.
Por que decidiu fazer mestrado em gerontologia?
Dez anos depois de ingressar no Serviço de Atenção ao Idoso em situação de risco pessoal e social de São Bernardo do Campo, e cinco anos de trabalho com o grupo de cuidadores de idosos, senti a necessidade de retornar ao espaço acadêmico, da pesquisa, e aprofundar as questões da velhice e envelhecimento num enfoque social.
Como se decidiu pelo seu tema de pesquisa e como foi o seu desenvolvimento?
Ao ingressar no Programa de Estudos Pós-Graduados em Gerontologia da PUC-SP apresentei um pré-projeto de pesquisa com a temática “Recurso financeiro para cuidadores de idosos”. O tema de pesquisa passou por duas mudanças ao longo do mestrado, e se definiu a partir das disciplinas que cursei e participação no Núcleo de Estudo e Pesquisa do Envelhecimento do Programa de Pós-Graduação em Gerontologia – NEPE, que tiveram papel fundamental na construção de um novo olhar para a questão social da velhice, dos modos de morar e especial enfoque na autonomia do idoso nesses modos de morar. No NEPE, a pesquisa da qual participei, com repercussão maior e influência direta na definição do tema de pesquisa foi a denominada “Sensações do Morar”, apresentada em março de 2009, sob a orientação da professora Suzana Medeiros. Como resultado dessa pesquisa, os idosos afirmaram que a sensação de casa está vinculada à possibilidade de decidir, fazer escolhas no ambiente. Consequentemente, qualquer modalidade de moradia que visa a proporcionar a sensação de “casa” deverá considerar esses aspectos. A partir desse ponto do mestrado passei a considerar o tema como definitivo: “Moradia e autonomia no morar”.
A moradia pode ser a pasárgada dos velhos? Lugar em que posso viver da maneira que desejo, que sonho, com liberdade, privacidade, conforto e acolhimento? E Pasárgada é muito mais que uma palavra criada pelo poeta Manuel Bandeira. Seu significado está além de qualquer dicionário. Tem o valor de uma vida inteira de desejos idealizados. Esperamos que idosos fragilizados tenham na moradia a pásargada como desejo realizado.
Que desdobramentos acha que esta pesquisa teve na prática ou ainda terá?
Fizemos um percurso metodológico de uma pesquisa-ação em uma moradia compartilhada por três idosos oriundos de um albergue, no município de São Bernardo do Campo (SP), para procurar responder ao problema: idosos fragilizados têm direito de escolher onde e como morar? Neste percurso a Instituição que subsidiava a locação do imóvel e o suporte para manutenção dos idosos na moradia compartilhada foi alvo de duas denúncias em que a casa era apontada como “asilo clandestino”, o que proporcionou um espaço eminentemente político e pedagógico. Nesse caminho, cidadão e poder público têm a oportunidade de romper práticas repletas de preconceitos. Além de reinvindicar moradia, há que se considerar as dificuldades imputadas ao idoso quanto à escolha de como, onde e com quem morar, o que é um grande desafio. As ações da família, sociedade e profissionais devem caminhar no sentido de considerar esse sujeito de direitos, estimular e fomentar mudanças na concepção social da velhice, com ênfase na preservação da sua autonomia.
Por algum motivo acha que a sociedade ainda não está preparada para implementar, na prática, o que você discute na pesquisa?
A sociedade brasileira carrega múltiplos mitos em relação à velhice, e é fortemente influenciada pelo conceito hegemônico do discurso biológico e orgânico, de velhice como doença, fragilidade e declínio. Esse conceito parece influenciar família, Estado e sociedade, principalmente no que tange ao poder de decisão, de escolhas no modo de morar. A incapacidade física por um episódio transitório ou permanente poderá influenciar o processo individual e de interação social. Logo, influenciar sua capacidade de escolhas.
Conforme a autora Simone de Beauvoir, parece haver conspiração silenciosa quanto à velhice, considera-se apenas como possibilidade o morar com a família ou instituição. Mas, transcendendo essa possibilidade, a de morar sozinho, chegar a determinada condição de fragilidade impõe-se como determinante e veredito para se encaminhar a uma moradia com família ou instituição. Geralmente independente do contexto social, o idoso fragilizado é destituído de sua capacidade de decidir. Nesse sentido conceber a possibilidade de escolha do idoso em uma moradia se constitui grande dificuldade na prática.
O que o mestrado e a pesquisa acrescentaram em sua vida pessoal e profissional?
O mestrado ampliou o meu campo de atuação, desconstruiu estereótipos, possibilitou uma formação em que o aspecto interdisciplinar do curso proporciona a construção de um novo olhar para a concepção social da velhice, além de um novo olhar para o meu próprio envelhecimento.
Quais os principais desafios que enfrentou durante o desenvolvimento da pesquisa?
Quando se fala de autonomia, se a casa pertence ao idoso, posse ou locação, depara-se, no âmbito profissional, que mandar em sua casa tem sido constantemente usurpado por familiares, profissionais de atendimento domiciliar, vizinhos, que se revestem de práticas caridosas e higienistas, e determinam por ele o que é “melhor” para morar.
No desenvolvimento da pesquisa emergiram acontecimentos imprevistos. O “inesperado”, no dizer de Morin (2001), que transforma cada escolha em uma “aposta”, os quais escolhemos conscientes do risco. Por exemplo, uma denúncia anônima motivou a vistoria da Vigilância Sanitária e o encaminhamento ao Ministério Público e posteriormente outra denúncia anônima na Delegacia do idoso. Denúncias feitas por vizinhos. Essa situação, em especial, foi para os moradores e para nós, uma grande surpresa. Desagradável surpresa. O fato trouxe elementos para discussões em reuniões e questionamentos pelos moradores sobre intervenção tão violenta. Para os membros da associação foi interessante observar o quanto estereótipos enraizados no grupo desenvolveram-se com todo o vigor, a ponto de provocarem a desistência de alguns membros, por acharem que poderiam ser implicados legalmente.
Quais são seus próximos passos na vida acadêmica a partir deste mestrado? E na vida profissional?
Pretendo ingressar na docência e continuar na pesquisa, além de continuar atuando no Instituto Envelhe-SER, instituição gestada e criada no período do mestrado, uma associação de direito privado, sem fins lucrativos, cujo principal objetivo é propiciar moradia e/ou manter o idoso em sua moradia, garantindo a autonomia. E sua missão é proporcionar convívio comunitário, autonomia e cidadania para a pessoa idosa em situação de risco e vulnerabilidade social, por meio da sua própria moradia, manutenção, segurança alimentar e acesso à rede social.
Sua pesquisa traz uma discussão importante. De que forma acha que ela contribui para a cultura da longevidade?
Algumas questões merecem especial atenção. Morar sozinho não deve necessariamente ser considerado abandono e solidão. Por conseguinte, não morar com a família é escolha que deve ser apoiada e incentivada pelo Estado, família e sociedade, viabilizando meios para a decisão ser respeitada, preservando a privacidade e a autonomia.
O que diria para quem está começando a estudar na área?
Sem dúvida esta é uma experiência intensa, em que você sabe como começa e ao término você sai modificado, principalmente quando identifica onde seu tema atravessa sua biografia, porque de todas as formações que se tem a Gerontologia diz respeito a nossa própria vida, e como se dá o nosso próprio processo de envelhecimento.
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