Essas pessoas com Alzheimer esquecem, lembram, imaginam, escrevem, cantam, choram, riem, bordam, recusam, desejam. Inventam uma vida, apesar de tudo – ou justamente por isso. Enfim, um mundo às avessas.
De fato, a doença apaga, mas sublinha;
abole de um lado, mas é para exaltar do outro; a essência da doença não está
somente no vazio criado, mas também na plenitude positiva das atividades de
substituição que vem preenchê-lo.
(Michel Foucault)
Desde 2013, acompanho pessoas em
processo demencial (diagnosticadas com doença de Alzheimer e outras demências)
como parte de minha pesquisa de doutorado e pós-doutorado em Antropologia. Ao
longo dessa trajetória, participei de consultas na neurologia e psiquiatria
geriátrica de um hospital universitário, reuniões do grupo de apoio aos
cuidadores-familiares da Associação Brasileira de Alzheimer, fiz visitas
domiciliares às famílias, coletei ensaios fotográficos e vídeos de campanha de
conscientização, li blogs e autobiografias dos próprios enfermos.
O interesse foi mostrar como se dá a composição dos processos
demenciais nos diferentes lugares e sujeitos percorridos, transbordando da
biomedicina para chegar a outras dimensões possíveis. Assim, a demência foi
vista não só como diagnóstico, mas também como estética (no sentido de um
pensamento visual e sensível), modo de vida, experiência, um outro mundo
possível.
Nos últimos 3 anos, acompanhei mais
de perto 3 famílias: João e a filha Ana Paula; Eunice e a filha Sílvia; Maria,
o filho Ivan e a nora Neuza. Com eles, registrei conversas e rotinas, fiz
passeios, compartilhei almoços, bolos, cafés, dores e esperanças. Recolhi
cenas, afetos, lembranças, delírios. E transformei esses materiais em um site da pesquisa.
Como fragmentos e rabiscos de uma
vida, os processos demenciais se desenrolam entre sopros e assombros, risos e
choros, aprendizados e perdas. São contos de terror, drama, suspense, comédia,
romance, aventura. Alguns parecem cenas de ficção científica. Nas flutuações da
doença, há conselhos – “Tem que fazer o que pede o coração”; “Devagarinho a
gente chega onde precisa chegar” -, mistérios – “A natureza é vodka”; “o rio tá
cabeçudo” -, constatações – “Eu tô em branco”; “Engoli um pedaço da frase” -,
sabedorias – “o Brasil não cuida dos pobres”; “A gente não é isso ou aquilo, a
gente é um monte de coisa”. Se é na escuridão da noite que brilham os
vaga-lumes, como ver, em meio ao borrão, ao nevoeiro da demência, os lampejos,
as aparições?
Pois essas pessoas esquecem, lembram,
imaginam, escrevem, cantam, choram, riem, bordam, recusam, desejam. Inventam
uma vida, apesar de tudo – ou justamente por isso. Vê-los, ouvi-los, dizê-los é
fazer do borrão um desenho, perceber que a dissolução de um mundo pode ser a
criação de outros modos de ser e viver. É ver que a linguagem, a memória, a
pessoa não simplesmente desaparecem, mas se transformam, reinventam.
Se a palavra não
sai, o dedo aponta, o olho brilha, o gesto descreve: uma mão que segura um
cobertor, uma mão na cintura, uma mão na cabeça, uma mão que cobre os olhos.
Como numa caça ao tesouro, é preciso recolher as pistas, os vestígios, os
restos: os pingos d’água depois do banho, a borra de café numa xícara, uma foto
guardada, uma piada, um passeio, uma dança, uma música, um sorriso. O rosto,
com suas marcas e distorções, permanece.
Se é possível ver vaga-lumes em meio
à névoa e escuridão, os rostos diante do espelho nos mostram que também é importante
ver os borrões – a vista embaçada, um olhar que se perde, uma fala que não sai,
um corpo que não se movimenta, o banheiro de casa que não é encontrado, o
retrato e o espelho que revelam fantasmas, o café, o banho, a comida que não
mais se consegue fazer. Ver os vaga-lumes e os borrões é ver os vislumbres que
permitem, em meio às perdas, fazer aparecer a constelação de uma experiência,
uma narrativa, uma memória, ainda que seja numa doença que vai apagando-as, em
que os fios vão se soltando aos poucos.
Não se trata, enfim, de negar o
terror da demência, mas de vê-la para além desse horizonte. Ver que, em meio à
confusão, João usa o humor e inventa palavras quando elas pareciam perdidas,
Maria canta com alegria e desenvoltura, Eunice encontra a mãe com todo o
amor.
Sim, eles esquecem, mas imaginam.
Confundem-se, deliram, mas também criam. Se estivermos dispostos, eles nos
ensinam a ver de outro modo, a deslocar palavras e coisas, a inventar com a
vida. O trator anda que nem casa. O macaco da novela vai invadir a sala.
Aprenderemos que nem tudo, enfim, precisa fazer sentido.
Nem tudo pode ser explicado, e, nessa
incompreensão, podemos simplesmente nos deixar estar, ficar à deriva. Se não é
possível alcançar por palavras, alcancemos por outros meios: um silêncio, um
toque, um ruído, um olhar. Talvez a não palavra, a não razão, o não sentido,
ainda que dolorosos, possam, enfim, libertar-nos.
Podemos aprender a
ver que se trata de outro mundo, um mundo às avessas, com outras coordenadas,
outra realidade, onde tudo é possível. Ao invés de trazê-los ao nosso mundo,
esse mundo que se tornou estranho a eles, e mostrar o quanto estão errados,
confusos, esquecidos, repetitivos, por que a gente não tenta entrar no mundo
deles? Lá, veremos que as regras são outras: o chinelo muda o canal da
televisão, os alimentos da geladeira podem atacar, a embalagem brilhante de
biscoito é uma borboleta, o detergente é o óleo de cozinha. Se não dá para
negar o aspecto trágico da situação, também é possível ver poesia quando
abrimos os nossos olhos para ver mais, ver além.
Convido você, leitor e leitora, a fazer a travessia para esse outro mundo, e se deixar encantar, assombrar, rir, chorar, aprender, inventar.
Em 16/01/2021 por Daniela Feriani Fonte: www.portaldoenvelhecimento.com.br/
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