Daniel Azevedo
Geriatra,
presidente da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG-RJ) e
membro do conselho do Centro Internacional da Longevidade no Brasil (ILC-BR)
“O médico que apenas sabe medicina, nem medicina sabe”, dizia o
português Abel Salazar, que foi médico, artista plástico e crítico de arte.
A compreensão do envelhecimento e o preparo para lidar com pessoas idosas exigem
do profissional da saúde mais do que o domínio do conteúdo técnico dos
tratados. Para o público leigo, o texto explicativo de cartilhas e afins não
basta. Um olhar mais amplo se impõe para a percepção da experiência de ser idoso.
"Autorretrato como o Apóstolo Paulo" (1661), tela de Rembrandt - France Presse/National Gallery of Art
As humanidades trazem uma contribuição essencial para reflexões sobre a
velhice. São memoráveis as linhas traçadas por um Pedro Nava que se descobre
velho perante o espelho em “Galo-das-Trevas” e descreve em detalhes alterações
da anatomia do próprio rosto, em que um processo de desbarrancamento provocou a
“queda dos traços e das partes moles deslizando sobre o esqueleto permanente”.
Ainda na literatura, o que dizer da aparição derradeira de Nathan
Zuckerman, escritor criado por Philip Roth, em “Fantasma Sai de Cena”?
O sátiro personagem, já septuagenário, acometido de uma incontinência
urinária que o constrange, escolhe a ficção como meio para elaborar uma paixão
inacessível. É o triunfo da imaginação sobre as insuficiências do físico.
O cinema também é pródigo em possibilidades de exploração. “A Canção da
Estrada”, do indiano Satyajit Ray, convida a um duro passeio pela velhice na
pobreza, situação na qual as redes sociais e a solidariedade exercem papel
fundamental.
No âmbito europeu, o filme “Amor”, de Michael Haneke, desponta como um
retrato cru da velhice rica contemporânea, marcada pelo distanciamento entre as gerações e
pela sobrecarga do cuidador familiar.
O diretor, em uma de suas provocações habituais, assina diálogos que
mencionam um médico que jamais aparece. Ao negar ao médico o protagonismo
esperado, a mensagem é clara: as respostas para a questão da velhice estão para
além da intervenção profissional.
O diretor Michael Haneke (de óculos) com os atores Emmanuelle Riva e Jean-Louis Trintignant no set de filmagem de "Amor" - Divulgação
A emoção aflora diante dos autorretratos de Rembrandt, sobretudo daquele
pintado no ano de sua morte (1669), aos 63 anos.
O artista sustenta o olhar do observador da tela, sem disfarçar rugas ou
cabelos brancos, com expressão sóbria. Não há espaço para autocomplacência.
Rembrandt limita-se a expor sua velhice como ela é.
Meu colega Ricardo Cruz, vítima da infame falta de responsabilidade com que se trata a
pandemia no Brasil, era um entusiasta do ensino das
humanidades, que também incluem antropologia e filosofia, entre outros campos
do conhecimento.
Elas apontam o caminho para que se exerça um necessário exercício de
alteridade. Ao nos colocarmos no lugar da pessoa idosa, conseguimos entender e
admitir o complexo panorama de (im)possibilidades associado à velhice. Somente
a partir de então torna-se factível a prática do cuidado, via de mão dupla que
envolve dois atores sociais.
Fica a expectativa de que o ano que ora se inicia seja mais ameno que o
torpe 2020. Sob os auspícios de Abel Salazar, com o tempero do olhar das
humanidades, renovam-se esperanças de aliar competência técnica e disposição
humanista no cuidado holístico que todas as pessoas idosas merecem receber.
- Fonte: www1.folha.uol.com.br/
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