Onde está a raiz da desigualdade entre homens e mulheres? O radical ponto de partida de ‘O Segundo Sexo’ continua válido 70 anos depois de seu surgimento
Por: MÁRIAM MARTÍNEZ-BASCUÑÁN 06 JUL 2019 - 17:00
Existem autores que simplesmente não têm predecessores ou sucessores: sua originalidade é absoluta. Simone de Beauvoir pertence a esse grupo porque seu pensamento foi um ponto de fuga que lhe permitiu chegar onde não se havia chegado. Embora muitos rótulos tenham sido dados ao seu livro O Segundo Sexo – definido, conforme o caso, como existencialista, humanista, ilustrado ou construtivista –, o fato é que 70 anos depois de sua publicação é um clássico absoluto, uma obra brilhantemente articulada através da qual continuamos contemplando e interpretando o mundo.
Essa é a sensação que se tem ao lê-lo porque esse livro elevou as experiências de vergonha e autoculpabilização das mulheres a uma inteligente e sutil reflexão filosófica; O Segundo Sexo articula uma meditação sistemática sobre significados sociais para os quais nem sequer existiam palavras em 1949. Sua coragem foi colossal, pois muitas feministas de seu tempo ainda guardavam silêncio sobre as fantasias projetadas nos corpos das mulheres e a importância disso em seu posicionamento social assimétrico.
Entre outras coisas, a contribuição dessa pensadora genial, a mais
ilustre moradora do Quartier Latin parisiense, foi situar a reflexão sobre o
corpo no centro do feminismo: se toda existência humana, segundo ela, é
definida por sua localização, a corporalidade da mulher e os significados
sociais que se lhe atribuem condicionam sua existência. Essa máxima tão simples
era revolucionária há 70 anos e continua sendo hoje, porque a mulher ainda se
realiza no mundo como um corpo submetido a tabus e estereótipos que servem como
desculpas para legitimar as mais evidentes discriminações sociais.
O
pessoal é político
O Segundo Sexo é feminista, claro, e o é
porque, se existe alguma coisa que define o feminismo, é a reivindicação para a
política de temas tabu ou esquecidos, de suma importância para compreender a
situação de desigualdade e subordinação das mulheres. A biologia, os usos
amorosos, a iniciação sexual, as implicações do casamento e
inclusive da velhice para a mulher... são alguns dos temas, de aspecto mundano,
mas de inquestionável importância, que perfilam com exatidão uma nova
sensibilidade política no tabuleiro de jogo com extremo brilhantismo e audácia.
Porque Simone de Beauvoir começou sua grande obra a partir de espaços
filosóficos praticamente desabitados e com temas que, até hoje, se desprezavam
decididamente como alheios ao político. Antecipou assim, ao fazer da reflexão
sobre o corpo um tema central, o famoso “o pessoal é político” do feminismo da
Segunda Onda nos anos sessenta. É interessante afirmar isso hoje, quando tantos
mal-entendidos pesam sobre ele, que colocam os defensores da ortodoxia na
defensiva. Quase parece absurdo ter de lembrar: nenhuma feminista seria a favor
de dinamitar a linha que separa a vida pública da necessidade de um abrigo
íntimo para nos protegermos. Não é o feminismo, mas as redes sociais, que estão
borrando essas fronteiras.
Começou sua obra com temas que até
então eram desprezados e vistos como não políticos
“O pessoal é político” significa simplesmente que qualquer prática
social é suscetível de se tornar um tema adequado para reflexão, discussão e
expressão públicas. A desestabilização da férrea divisão entre público e
privado serviu para abrir esses espaços de liberdade e igualdade para as
mulheres, mas nosso pensamento continua formatado por uma velha presunção
ideológica que sente como um ataque tudo aquilo que desnatura o que nunca
deveria ter sido naturalizado. O fato de o mundo privado da necessidade e dos
cuidados fosse nomeado no feminino não tinha nada de natural e continua sendo
um problema em nossas sociedades: ainda hoje, na Espanha, onde existe uma
grande consciência feminista, apenas dois de cada 10 homens compartilham as
tarefas domésticas com suas parceiras, de acordo com uma pesquisa do CIS
realizada em 2017. O problema é que essa divisão política que relegou as
mulheres a uma esfera doméstica como se fosse seu espaço natural também
promoveu sua invisibilidade como sujeitos políticos. E ainda hoje a presença
pública das mulheres, seu reconhecimento e prestígio continuam sendo substancialmente
inferiores ao dos homens.
Simone de Beauvoir em seu apartamento em Paris em 1976.JACQUES PAVLOVSKY / SYGMA / GETTY
Corpos
na esfera pública
Essa separação entre os sexos que o feminismo tanto questionou repousa
sobre a fragmentação radical da experiência humana. Por um lado, os homens
exerciam a cidadania pública e, por outro, as mulheres governavam no mundo
privado o âmbito das necessidades, afetos e desejos. A renomada filósofa Carole
Pateman o explicou no Contrato Sexual: essa ficção se mantém por
uma poderosa ideia abstrata do cidadão universal, “que não tem corpo, porque é
razão desapaixonada”. Mas esse processo de desencarnação dos homens ocorre em
paralelo a outro menos amigável que define essencialmente as mulheres como
corpos vulneráveis. Toda a nossa tradição se baseia, de fato, nessa ilusão
metafísica assentada –nas palavras de Christine Battersby– sobre a falácia de
que “os sujeitos são independentes entre si, e seus corações racionais
permanecem separados das dores e dos sofrimentos que seus corpos vulneráveis
provocam”. Quando Simone de Beauvoir disse que “a mulher, como o homem, é o seu
corpo” deu uma guinada radical nessa tradição para nos falar do corpo vivido e
avançar para além da separação cartesiana entre um sujeito que “pensa, logo existe”
enquanto habita uma espécie de recipiente passivo que não faz parte do seu eu.
Beauvoir reivindica o corpo, e a partir daí começa uma frutífera produção de
literatura feminista e o que a cientista política Seyla Benhabib descreveu com
precisão como “o surgimento do corpo na esfera pública”.
A partir de uma abordagem estrutural
definiu o patriarcado, esse conceito que ainda provoca medo
Na verdade, o que Simone de Beauvoir queria nos dizer é que existem
inevitáveis dependências entre nosso corpo e nossa mente, e que se a
experiência corporal condiciona a forma pela qual enfrentamos o mundo, no caso
da mulher isso tem um efeito maior, pois são as significações sociais dadas a
essa forma de nos relacionarmos com nossos corpos e sua importância para nos
desenvolvermos como pessoas aquilo que estrutura uma sociedade profundamente
desigual. Em suas próprias palavras, enquanto “o homem percebe seu corpo como
uma relação direta e normal com o mundo (...), a mulher tem ovários”. Desde a
mais tenra infância a mulher experimenta seu corpo como uma coisa que tem de
proteger, sempre atenta a que seus movimentos não entrem em contradição com a
feminilidade que se espera que projete em todos os momentos. E isso é comum a
todas as mulheres, porque, independentemente de suas oportunidades e suas
possibilidades de escolha, existe “uma base comum subjacente a cada existência
individual feminina no estado atual de educação e costume”. E assim, a partir
dessa abordagem estrutural, Simone de Beauvoir define o patriarcado, esse conceito que continua
produzindo muito medo absurdo.
A palavra “patriarcado” não implica nada mais (e nada menos) do que o
reconhecimento de que, sob a pluralidade de suas vidas, da diversidade e da
criatividade de cada mulher, existe uma unidade que pode ser identificada e
narrada de forma inteligível e clara, uma linha de experiências compartilhadas
subjacente para cada vida particular que nos torna um pouco mais desiguais em
relação aos homens. Essa forma tão simples de definir o patriarcado
significava, na verdade, um grande passo histórico para frente: fugir de essencialismos
ao descrever as mulheres, mas também desse nominalismo estéril que nega toda
diferença. Por isso Simone de Beauvoir enfatizava que dizer que “somos todos
seres humanos” é algo tão oco que carece de relevância como ponto de partida
para explicar qualquer coisa.
A
falácia da biologia
Onde está a raiz dessa desigualdade? Por que a mulher não é tão livre
quanto deveria ser? São as perguntas de que parte a autora para escrever a obra
máxima e seminal do pensamento feminista. Mas, curiosamente, O Segundo
Sexo começa a introduzir sua proposta a partir de uma observação um
tanto peculiar: um homem não teria pensado em escrever um livro sobre sua
situação particular no mundo, porque naturalmente sua experiência representava
a experiência universal de todo ser humano. Daí que Simone de Beauvoir defina a
mulher como alteridade, como esse segundo sexo em situação de subordinação em
relação ao primeiro.
Sua famosa frase “Não se nasce mulher:
torna-se mulher” é uma das mais revolucionárias
Hoje é quase intrigante que ninguém jamais tivesse perguntado com essa
clareza sobre a evidente injustiça de que “homem” seja a palavra que designa
tanto a parte masculina da humanidade e a humanidade inteira como gênero.
Enquanto isso, a experiência feminina sempre foi declinada no singular. A
mulher representa a mulher (ou as mulheres), mas nunca a humanidade inteira.
Beauvoir nos lembra: “Ele é o Sujeito, é o Absoluto: ela é a Alteridade”.
A diferença entre o Absoluto e a Outra é definida em O Segundo
Sexo a partir de uma abordagem existencialista centrada, como não
poderia ser de outra forma, na liberdade. Simone de Beauvoir nos mostra uma
masculinidade educada na ideia de um sujeito livre que se move pelo mundo, com
iniciativa e audácia, criando e narrando sua própria história. Como na épica legendária da Odisseia,
Ulisses alcança essa transcendência baseada no valor da separação, da
independência e da autonomia diante de uma Penélope encerrada em um destino que
já está escrito para ela: a esposa que espera, que deseja servir e se entregar
a um ator forte em vez de ela o ser.
Por isso a mulher é “imanência”. Confinada em uma natureza particular,
existe como objeto antes que como sujeito, como alguém com uma natureza
biológica que a restringe, que a encerra nessa essência inapreensível que
define as lentes pelas quais é vista e avaliada.
“Eu gosto que a mulher seja mulher, mulher”, respondeu uma vez um
político espanhol, e não foi o único. Esse modelo ideal se conecta diretamente
com as expectativas geradas em torno das mulheres, com os clichês sobre sua
predisposição para cuidar dos outros e agradar, sobre seu gosto ao se vestir,
sua capacidade de sedução e seu sorriso... “Por que você está sempre tão
séria?”, perguntava uma conhecida figura da imprensa espanhola à deputada Tania
Sánchez. É que a primeira vocação da mulher será sempre a de agradar, disse-nos
Simone de Beauvoir, o que reduzirá substancialmente o mundo de sua
autorrealização individual. Ela aprenderá então a crescer desejando um homem,
ou um sujeito externo a ela mesma, mas não exercendo sua liberdade. Sua
confiança será, pois, sempre menor. E sentirá dúvidas, medos e inseguranças
quando seu sucesso entrar em contradição com o que dela se espera como mulher,
mulher. Daí a famosa sentença de Beauvoir: “Não se nasce mulher: chega-se a
sê-lo.” Assim ela oferecia ao feminismo, e a toda a humanidade, uma das
formulações mais revolucionárias de todos os tempos. Tanto que tudo o que veio
depois é quase uma nota de rodapé do seu pensamento. É intrigante como ninguém
tinha se perguntado por que “homem” designa a humanidade inteira.
É intrigante como ninguém havia se
perguntado por que “homem” se refere à humanidade inteira
Nasceria nesse momento a ideia do gênero como categoria analítica, como
base para explicar por que essa diferença entre homens e mulheres não é
natural, mas acidental. Aparece então a famosa distinção sexo/gênero, essa
dicotomia entre o determinismo biológico que, desde Aristóteles, afirmava que
“a fêmea é fêmea em virtude de uma determinada carência de qualidades”, e o
outro lado da moeda: a construção do feminino como um fato cultural, um
atrevimento audaz e genial que frisava a importância da tradição no
condicionamento da mulher, forçada pelo costume a adotar papéis considerados
socialmente inferiores. O feminismo de Beauvoir reivindicava-se, assim, como
humanismo, reclamando para as mulheres a energia criativa e as capacidades que
lhes haviam sido negadas historicamente.
A partir daí, todo o feminismo contemporâneo foi e é um diálogo com seu
livro inaugural: do feminismo da diferença de Carol Gilligan até a implosão do
pensamento queer auspiciado por Judith Butler, passando pelo feminismo
radical de Kate Miller, os feminismos pós-coloniais e multiculturais e o
feminismo negro. Seria preciso um longo percurso por essa grande conversação
para entender a evolução e a riqueza de todos os enfoques teóricos que, com
grade capacidade crítica, foram dissecando a obra de Beauvoir desde o
reconhecimento.
O feminismo da diferença seguiria a esteira do construtivismo de
Beauvoir para salientar que a educação importa, claro, mas que uma educação
baseada no cuidado e na empatia não deveria se concentrar unicamente nas
meninas; poderia ser proveitosa para fazer o mundo melhor se fosse estendida a
todos os seres humanos, sem distinção.
Mais adiante, o projeto de tornar positivo o significado histórico
da cultura da mulher apareceria por meio de propostas
artísticas como as de Judy Chicago (e sua instalação The Dinner Party)
e dos textos subversivos de Julia Kristeva e Luce Irigaray. Elas tentam
imprimir outra perspectiva aos ensinamentos de uma Beauvoir vista já como a mãe
do pensamento feminista contemporâneo. Finalmente, esse diálogo para o qual
Beauvoir tinha aberto a porta e que mantinha inalterável a distinção
sexo/gênero explodiria com a fabulosa entrada do paradigma da corporalidade com
outra grande expoente do feminismo e do pensamento: a formidável Judith Butler.
Quando um autor é poderoso demais, pode chegar a funcionar como uma
algema mental. No caso de Simone de Beauvoir, contudo, a recepção de sua obra
foi na verdade um gigantesco primeiro degrau que nos elevou rumo a uma
consciência crítica. Muitas daquelas primeiras reflexões sobre a dignidade
humana, a criatividade e a autonomia da mulher são consideradas ainda hoje uma
autêntica mina para o feminismo. O Segundo Sexo aos 70
continua sendo um brilhante buraco sem fundo repleto de perguntas que abrem o
mundo das mulheres, mas também dos homens, a novas possibilidades e horizontes
de liberdade. Fonte: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/07/05
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