O prestigiado antropólogo francês publica 'As Pequenas Alegrias', breviário para se encontrar a felicidade na vida cotidiana "apesar de tudo"
Nem triste nem alegre, mas intenso. É assim que se vê o
antropólogo Marc Augé (Poitiers, 1935) atributo com o
qual ele mesmo define a chanson, cujo cantarolar ele exalta como um
dos gestos cotidianos que nos proporcionam “alegrias, apesar de
tudo" – assim como sair da cama de um hospital e já poder
ir a um bar ali perto e, dentro de poucos dias, voltar para casa; tomar um café
ou comer um prato de massa com os amigos, o retorno a um romance ou um filme
para reviver o impacto que nos causou ... E esse tudo são os
muitos males que afligem a sociedade em que em 1992 ele cartografou a
existência de não lugares (Não Lugares – Introdução a uma Antropologia da
Supermodernidade, editora Papirus, 2017) – aeroportos,
hipermercados na periferia, outlets gigantescos... – onde
as relações interpessoais, cruciais para nossa identidade individual e
coletiva, são nulas. O ex-diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências
Sociais (1985-1995) e de várias pesquisas no Centro Nacional de Pesquisa
Científica (CNRS), em Paris, ciente de que "a grande felicidade é difícil
de alcançar", propõe, por isso, Bonheurs du Jour (Las
Pequeñas Alegrías, na tradução espanhola da Ático de los Libros). Por
As tecnologias alteram espaço e tempo: você pode entrar em contato com alguém em qualquer lugar e circunstâncias, mas relacionar-se com os outros implica dedicar tempo e espaço específicos a isso. É paradoxal: as redes sociais estão destruindo as relações sociais
Pergunta: “Para ser feliz, você tem que conhecer a si mesmo, estar atento ao
presente e ser útil para os outros", o senhor afirma. Mas nesses tempos
egocêntricos, duas dessas premissas quase ninguém cumpre: conhecer a si mesmo e
se entregar aos demais...
Resposta: É por isso que minha proposta é modesta. Ir até mesmo sozinho ao
bar perto de casa é uma oportunidade de estar com os outros. Pode parecer
superficial, mas de qualquer modo é real. Todas as propostas do meu livro estão
vinculadas ao movimento, ao ir na direção de outras pessoas. Nesses pequenos
momentos sentimos que existimos, com os cinco sentidos. Mas você tem que saber
como perceber isso.
P: Toda a sua obra, e este livro também, destaca a importância das relações
sociais, de que criamos e obtemos sentido quando nos relacionamos com os
outros, mas há pesquisas nos EUA que já detectam que os jovens preferem
interagir em redes sociais do que fisicamente. Estamos com medo de nos
relacionar cara a cara?
R: É o grande mal das redes, que estão subvertendo a própria natureza das
relações humanas. Alteram o espaço e o tempo: você pode entrar em contato com
alguém, em qualquer lugar e circunstância, mas relacionar-se com o outro
implica dedicar tempo e espaço específico a isso. É paradoxal: as redes sociais
estão destruindo as relações sociais. As pessoas deveriam perceber que aquilo
que as redes lhes dão não é suficiente. E acontece também que elas fazem com
que os efeitos do reconhecimento sejam substituídos pelos efeitos do
conhecimento: vemos um apresentador de televisão como se o conhecêssemos, mas
nós somente o reconhecemos, e isso se passa com tudo e com todos.
P: Novas tecnologias são introduzidas no ensino, partindo do pressuposto
de que é preciso ser flexível e dominá-las, mas muitas vezes isso acontece em
detrimento da memorização, dos exames...
R: As redes devem ser usadas para difundir o conhecimento e isto que eu
digo já está se tornando uma utopia educacional porque estamos nos distanciando
cada vez mais disso: usamos mais as redes sociais para nos relacionar do que
para nos conhecermos e para conhecer. É um grande erro ... Concordo em que
certa pedagogia é hoje branda demais porque esses instrumentos, em si mesmos,
não transmitem nada. Nada pode substituir o aprendizado da palavra nem a
relação, física, professor-aluno, e é urgente que isso seja entendido já.
Quanto mais se uniformiza a sociedade, mais se aprofundam as desigualdades; um
paradoxo, certo? Mas é assim: cada vez há um número menor de pessoas na
vanguarda do conhecimento real e gente demais que não sabe... mas que pensa que
sabem.
Há cada vez mais um número menor de
pessoas na vanguarda do saber real e gente demais que não sabe..., mas acredita
saber.
P: O senhor pede em Las Pequeñas Alegrías que se recupere o entusiasmo das primeiras vezes, retomar filmes e livros, chama isso de "ter o espírito de Don Juan", sempre com a esperança sedutora do primeiro dia ... Mas condições precárias de trabalho, ritmos de trabalho produção cultural em massa não convidam à tranquilidade da revisitação ...
R: É por isso que falo de "pequenas felicidades, apesar de tudo". Os mais alienados podem experimentar esses momentos de existir intensamente que eu proponho, mas, acima de tudo, têm que estar cientes de vivenciá-los. Não são momentos que virão a nós por acaso. Temos de saber que estão ocorrendo naquele momento, reconhecê-los para que possam permanecer conosco. Se a pessoa estiver ciente deles, também são uma promessa de futuro.
P: Inclui na galeria de prazeres, cantarolar e assobiar...
R: Hoje as pessoas não assobiam
mais nem cantam. Quando eu era pequeno, ouvia constantemente nas ruas, nas
casas. Era memória histórica e uma ligação geracional, você vinculava o refrão
a algo do seu passado ... Hoje, porém, em cafeterias, instituições e outras
instalações sempre há um rádio ou trilha musical tocando. Hoje não suportamos o
silêncio. Medo de estar com nós mesmos? Não, é o sistema que quer que sejamos
imersos no ruído, talvez para nos manter mais tensos ... não sei. Por outro
lado, o ruído, o volume, dificultam a criação. Ao cantar temos a sensação de
criar e recriar.
Não é difícil imaginar uma classe privilegiada que
abandone a Terra. Não sei se a Terra já é toda ela um ‘não lugar’
P: Também surpreende que defenda a aposentadoria, geralmente vista como
se o sistema tivesse decidido que você não serve mais e por isso te encosta...
R: Tudo depende do que fazemos com isso. Talvez seja o grande momento da
verdade, se você realmente toma as rédeas do tempo. Há poucos momentos na vida
em que podemos começar algo e escolhermos o quê. Faça o que você sempre quis:
criar, viajar, mudar-se, realizar um sonho ...
P: Em 1992, ao detectar os não lugares, o senhor os situou
nas periferias, aeroportos... Não tem a sensação de que já se trasladaram para
o centro das cidades, todos iguais, com as mesmas megalojas, um shopping center
onde só o cartão de crédito fala?
R: Eu iria mais longe: hoje podemos dizer que o não lugar é
o contexto de todos os lugares possíveis. Estamos no mundo com referências
totalmente artificiais, mesmo em nossa casa, o espaço mais pessoal possível: sentados diante da TV, olhando ao mesmo tempo o
celular, o tablete, e com os fones de ouvido ... Estamos em
um não lugar permanente. Esses dispositivos estão
permanentemente nos colocando em um não lugar. Nós os
carregamos não-lugar em cima, conosco...
P: Estamos em um mundo que precisa que se consuma, mas o trabalho é
precário e os salários não são suficientes para consumir. O sistema entrará em
colapso? Ou se defenderá criando inframundos distópicos?
R: O próprio sistema capitalista está criando essa
dicotomia de mundos antagônicos, é evidente. Mas não sei se vai continuar no
tempo, ou se o sistema vai explodir ou acabará sendo reformado ... E não sei
porque nunca aconteceu algo semelhante na história da humanidade: é a primeira
vez que tudo é, literalmente, global. E multifatorial. Até questiona o futuro
físico do planeta... Não é difícil imaginar uma classe privilegiada que
abandone a Terra ... Não sei se a Terra já é toda ela um não lugar.
P: Como antropólogo, como vê o movimento Mee Too?
R: Todos os sistemas culturais justificaram a dominação masculina em
todas as formas de cultura. O feminismo parece muito importante porque permite
pensar no ser humano como homem genérico, não como sexo. Outra coisa são
algumas de suas táticas, discutíveis, como a obrigação da cota paritária ou a
exigência de que somente mulheres ou membros do coletivo LGBT possam fazer ou
dirigir determinadas coisas. Isso é quase contraditório... Mas tudo será
resolvido no dia em que a igualdade for real.
P: A ascensão do nacionalismo e do proselitismo religioso é fruto
direto da globalização?
R: As consequências da globalização revelam o espírito de certas
religiões ou sentimentos patrióticos. É claro que abrem campos para as zonas
obscuras dessas áreas.
P: A Europa tem valores próprios? Com o fenômeno da imigração em
massa, a Europa os está perdendo?
R: É curioso porque é quando não estamos na Europa que consideramos
que a Europa existe e tem valores. A Europa não pode existir sem os valores do
Iluminismo do século XVIII: sua sobrevivência é vital para ela. É um suicídio
para a Europa se fortificar, criar muros contra os outros.
P: A ONU tem um Observatório da Felicidade… R: É absurdo. Por não saber, não se sabe bem nem o que observa. Assim estamos; por isso, as minhas pequenas alegrias. Fonte: https://brasil.elpais.com/brasil/2019
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