Por que o clichê mais repetido de 2020 é uma falácia perigosa?
“Novo normal” é um bicho peçonhento, mas clichês não são vilões em si. Todos carregamos no bolso essas moedinhas verbais, expressões cristalizadas que trocamos no dia a dia. Na maior parte das vezes, nem nos damos conta disso.
Nossas chuvas fortes tendem a ser torrenciais, o toque do craque adora ser sutil, os ânimos ficam logo exaltados, suamos em bicas, às vezes somos acometidos de curiosidade mórbida e sempre valorizamos o sucesso avassalador e a ascensão meteórica. Clichezentos somos —pura e simplesmente.
O filósofo espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955) chamou os lugares-comuns de “bondes do transporte intelectual”. Gosto dessa imagem dos chavões como malha de transporte público numa metrópole —o debate de ideias— onde circula muita gente.
Numa cidade em que só houvesse automóveis originalíssimos com trajetórias irrepetíveis, os engarrafamentos seriam infinitos e pouca gente se entenderia. Mais do que um subproduto da sociabilidade humana, o bonde lotado de fórmulas testadas é funcional.
A frase feita nos dispensa de pensar, nos acolhe em seu pacto morninho de compreensão suficiente, de premissas aceitas por todos, para que possamos tocar a vida.
No dia em que existir uma ciência chamada clichelogia, acredito que ela identificará dois perigos principais em nossa atração pela ideia pré-fabricada.
Um é o risco para quem deveria fugir do caminho batido. Rebaixam seus ofícios pensadores que pensam chavões, escritores que os escrevem, cineastas que os dirigem. Arte e pensamento só combinam com clichê quando o tratam com ironia.
O segundo perigo é maior. No prefácio de seu divertido “O Pai dos Burros – Dicionário de Lugares-Comuns e Frases Feitas” (Arquipélago), o jornalista e escritor Humberto Werneck cita uma frase em que Hannah Arendt (1906-1975) reconhece a função social do clichê e, ao mesmo tempo, alerta para seu risco:
“Clichês, frases feitas, adesão a códigos de expressão e conduta convencionais e padronizados têm a função socialmente reconhecida de proteger-nos da realidade, ou seja, da exigência de atenção do pensamento feita por todos os fatos e acontecimentos em virtude de sua mera existência.”
No entanto, o clichê para a pensadora alemã é mais do que conforto preguiçoso ou convencionalismo de estilo. É uma ferramenta linguística que ideologias autoritárias usam para induzir letargia crítica, indiferença, distância entre pensamento e realidade: “O pensamento ideológico se emancipa da realidade que captamos com nossos cinco sentidos” (“As Origens do Totalitarismo”).
Pois é: conheço poucas expressões mais indutoras desse tipo de letargia crítica do que “novo normal”. Naturaliza de imediato qualquer coisa, do anormal ao subnormal, do vagamente anômalo ao definitivamente criminoso, passando pelo indefinido, o tumultuado, o obsceno e o bolsonarista.
Só quem viajar ao futuro e consultar livros de história sobre o desditoso ano de 2020 poderá dizer se nosso tempo pariu mesmo um “novo normal” e, em caso positivo, qual foi ele. Quando o normal já era, seu sucessor imediato só pode ser o não normal, o anormal. O resto, se não for letargia, é má-fé.
Em um momento em que tanto se fala de um "novo normal" após a pandemia, ao menos uma opinião destoa. A do empresário russo Eugene Kaspersky, fundador da empresa de softwares para segurança digital que leva seu sobrenome.
“Não haverá nenhuma grande mudança. Não é a primeira pandemia, nem é a pior. O mundo vai voltar ao normal rápido. Vai continuar a funcionar da mesma forma que era antes", declarou em conferência de imprensa realizada online.
Na visão de Kaspersky, apesar de as reuniões virtuais continuarem mais comuns, os encontros presenciais devem voltar a ser realizados rapidamente, uma vez que "são a forma mais eficiente de comunicação e nada pode substituí-los".
Sérgio Rodrigues - Escritor e jornalista, autor de “O Drible” e “Viva a Língua Brasileira”.
Imagem:www.savarejo.com.br/
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