Ensaio ou marketing? - Continuação da Parte 2
Ambos os autores se referem a um tipo de fraude sempre presente na fase 4, que consiste realizar ensaios sem objetivos científicos, mas desenhados apenas para aumentar as vendas. As empresas recrutam médicos para prescreverem remédios aos seus pacientes, às vezes para usos não aprovados, e anotarem os resultados. Mas os médicos não precisam ser pesquisadores e não há muitas exigências – não é preciso ter grupo controle, o ensaio não precisa ser duplo-cego (duplo-cego é quando nem o paciente nem o médico sabem qual substância está sendo administrada a qual grupo).
Eles dizem que esta é uma fase de muito marketing. A estratégia envolve distribuir amostras grátis – que têm boas chances de ‘prender’ pacientes a drogas mais caras –, promover grandes encontros e congressos em que palestrantes (e participantes) falam bem do novo medicamento e ter contato cara-a-cara com médicos em clínicas e hospitais, por exemplo.
Lembra o caso do Vioxx? A mesma matéria da IstoÉ Dinheiro, já citada, conta parte da receita do seu sucesso no Brasil: “A Merck trabalhou direitinho para convencer os médicos das vantagens de seu produto sobre os da concorrência. No Brasil, mobilizou um pequeno exército de representantes de elite (todos com curso universitário e um terço com pós-graduação) para o corpo a corpo com os doutores. Alves [José Tadeu Alves, então presidente da subsidiária brasileira] não revela quanto gastou na operação, mas um singelo sorriso revela seu grau de satisfação: ‘Não tem mais volta. Os usuários estão migrando das drogas com formulação antiga para os produtos mais modernos’”.
Um viés importante é o da publicação seletiva, quando os resultados desfavoráveis ficam ocultos e apenas os favoráveis são publicados. É óbvio que a não publicação pode acontecer por diversas razões, muitas delas perfeitamente legítimas. “O estudo pode não ter sido concluído, o pesquisador pode considerá-lo irrelevante, o artigo pode não ter sido aceito nas revistas. Isso é normal. Mas ele pode não ser publicado porque o financiador assim não o quis”, aponta Ruben. “Aí a fraude pode prosperar”.
Também acontece, como diz Gøtzsche, o “disfarce” dos resultados negativos: às vezes eles até são publicados ao longo do artigo, mas a conclusão é escrita de forma a conduzir para uma interpretação positiva.
José Carvalheiro e Cristiane Quental dizem neste artigo, que os periódicos têm critérios diversos para aprovar artigos, levando os pesquisadores (que, naturalmente, querem e precisam publicar) a selecionar resultados de acordo com isso. Um enorme problema é que um dos interesses de muitos periódicos é agradar justamente à indústria, que também age sobre eles, encomendando “milhares de exemplares para distribuir aos médicos”. E muitos também têm espaços para publicidade.
A publicidade vem até em forma de artigos científicos.
Angell, que atuou, ela própria, por 20 anos na New England Journal of Medicine, uma das revistas científicas mais conhecidas do mundo, também tem muitas críticas a essas publicações. E escreve que várias empresas aproveitam os ensaios da fase 4 para burlar a lei e promover seus medicamentos para usos não autorizados pelas agências reguladoras, mesmo sem provas da eficácia nesses casos. Como o marketing direto para esses usos é proibido, mas os médicos podem prescrever, as empresas dão jeitos de fazer com que artigos sobre novos usos baseados nos ensaios (como já vimos, muitas vezes de péssima qualidade) sejam publicados e que circulem bastante no meio médico. Elas também financiam congressos e pagam palestrantes para falarem sobre os ‘benefícios’ dos remédios nesses usos.
A autora dá como exemplo a história do Neurotin, autorizado em 1994 para ser usado em epilepsia caso outros medicamentos falhassem. Não dava muito lucro. Então a empresa patrocinou publicações, pagou pesquisadores para assinarem artigos (alguns sequer continham dados, só comentários favoráveis), levou “contatos médicos” aos consultórios para tirar dúvidas e patrocinou conferências. Resultado: as prescrições aumentaram espantosos 70%. E o Neurotin, antes pouco rentável, se tornou um grande êxito, rendendo US$ 2,7 bilhões em 2003 – 80% das prescrições eram para usos não autorizados, como transtornos bipolares, transtornos por estresse pós-traumático, insônia, síndrome de pernas irrequietas, calores da menopausa e dor de cabeça.
Um dos truques citados no caso Neurotin – usar pesquisadores para assinar artigos que, na verdade, foram escritos por trabalhadores da empresa – é relativamente conhecido no meio acadêmico, embora seja difícil de se comprovar (por razões óbvias). Depois do escândalo da Merck com o Vioxx, foram revelados documentos apontando que a empresa também fez exatamente isso para ocultar os efeitos nocivos da droga.
Quem faz um bom resumo dos efeitos disso tudo é o editor do prestigioso Lancet, Richard Horton: “Grande parte da literatura científica, talvez a metade, pode simplesmente não ser verdadeira. Afirmada por estudos com amostras pequenas, efeitos minúsculos, análises exploratórias inválidas e conflitos de interesse, juntamente com uma obsessão por perseguir tendências da moda de importância duvidosa, a ciência deu uma guinada em direção à escuridão”, escreve ele.
De quem são os dados? Cada vez mais, são da indústria. E isso certamente ajuda a explicar o fato de as pesquisas financiadas por ela publicarem mais resultados positivos. Gøtzsche conta que, em 2005, um levantamento mostrou que 80% das faculdades de medicina permitiram um acordo para ensaios concordando em dar a propriedade dos dados ao patrocinador. E 50% permitiram que o patrocinador apresentasse a redação dos resultados para a publicação – aos pesquisadores, caberia revisar e sugerir revisões. No livro, ele descreve vários casos impressionantes que vão desde demissões e ações judiciais até ameaças de morte quando pesquisadores tentaram publicizar desfechos ruins.
Isso quer dizer que, nesses casos, pesquisadores não deixam de publicar resultados negativos porque não querem, mas porque simplesmente não podem. “O problema é que a pesquisa clínica deveria se fazer de forma tão independente que um resultado negativo fosse considerado tão útil quanto o positivo”, analisa José Ruben, “porque, sob o aspecto científico, realmente é. Porém, à indústria, o resultado negativo não interessa. Um cientista independente que chegue a um resultado negativo não vai entrar em pânico por isso. Mas a indústria farmacêutica se move com essa intenção, quando há tanto dinheiro em jogo?”, questiona.
“Há tragédias por trás dos números” - Apesar de ser o caso mais notável de crime na indústria nos últimos tempos – tanto pelo número de mortes como por tudo o que os documentos revelados no processo trouxeram à tona – o do Vioxx não é o único. A questão é que, como escreve Gøtzsche, “há tragédias reais por trás dos números”. E, quando a tragédia é anunciada, o cenário se torna ainda mais sombrio. Depois que a Merck foi processada pelas complicações com o Vioxx, documentos mostraram que a empresa conhecia os riscos havia anos.
Ele narra também o caso do Paxil, antidepressivo da GSK cuja eficácia e segurança para uso em crianças e adolescentes foi garantida por um ensaio fraudulento. A fraude só foi descoberta quando a GSK foi processada… E então se soube que os estudos revelando a ineficácia haviam sido retidos. Pior ainda, entre os dados ocultados estava o fato de que “pelo menos oito crianças tornaram-se suicidas tomando Paxil, versus uma com placebo”. Entre 2001 e 2005, haviam sido feitas cinco milhões de prescrições por ano desse remédio para menores de idade. O autor também conta que a Eli Lilly excluiu 76 de 97 casos de suicídios com o Prozac (a fluoxetina, antidepressivo campeão de vendas) em um estudo de fase 4 que submeteu à FDA e, em 1999, a agência recebeu relatórios sobre mais de dois mil suicídios associados ao medicamento.
Fonte: https://outraspalavras.net/outrasaude/o-que-nao-tem-remedio-sera-que-tera/
Comentários
Postar um comentário