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Coronavírus anuncia revolução no modo de vida que conhecemos

Domenico De Masi relata drama na Itália e diz que lógica neoliberal tem que mudar

Resumo: Sociólogo italiano narra situação dramática em seu país e argumenta que as imposições em decorrência da pandemia, como o trabalho em casa, a solidariedade e o papel da esfera pública, demonstram que é possível e desejável mudar a lógica mercadista da economia e criar modos de viver mais racionais e proveitosos para o mundo contemporâneo.

A Itália de onde escrevo, um dos países mais vivazes e alegres do mundo, é hoje apenas um deserto. Cada um dos seus 60 milhões de habitantes acha que é imortal, que o vírus não o tocará, que irá matar não ele mas alguma outra pessoa. Porém, no silêncio do seu coração, cada um sabe que essa ilusão é pueril e que essa pandemia misteriosa, abstrata e tangível ao mesmo tempo, escolhe suas vítimas ao acaso, como numa roleta russa.

Moro há 50 anos no centro de Roma, na rua mais movimentada da cidade, que leva da praça Veneza à Basílica de São Pedro.

Normalmente, essa rua está 24 horas por dia entupida de trânsito, de turistas e peregrinos. Há duas semanas, está muda e deserta. Só de vez em quando ouve-se o grito de uma sirene de ambulância e algum sem-teto passa. A cidade inteira está fantasmagórica como a Los Angeles de “Blade Runner”. Aqui, porém, desapareceram até os replicantes extraterrestres.

O que significa uma pandemia como essa para Roma, para a Itália, para a humanidade como um todo? Como ela age nas mentes e nos corações de todos nós que, armados com tecnologias poderosas e inteligência artificial, até poucas semanas atrás nos sentíamos os senhores do céu e da terra?

Subitamente nos descobrimos frágeis pigmeus diante da onipotência imaterial de um vírus que, por vias misteriosas, escapou de um morcego chinês para vir matar homens e mulheres em nossas cidades.

Numa Europa onde, até ontem, era permitida a livre circulação de pessoas, mercadorias e dinheiro, agora cada país, em vez de abraçar uma colaboração ainda mais solidária com os demais, tranca suas próprias fronteiras, iludindo-se de forma cínica e infantil que seja possível deter o vírus com barreiras aduaneiras.

Contudo, hoje, mais do que nunca, os soberanismos parecem tentativas fantasiosas contra a globalização. Hoje, mais do que nunca, a difusão da pandemia e sua rápida volta ao mundo demonstraram que deter a globalização é como se opor à força de gravidade. Nosso planeta já é aquela “aldeia global” da qual falava McLuhan, unida por infortúnios e pela vontade de viver, precisando de uma direção unitária, capaz de coordenar a ação sinérgica de todos os povos que desejam se salvar. Nessa aldeia global, nenhum homem, nenhum país é uma ilha.

Talvez tenhamos aprendido que o caso agora é de vida ou morte e que ninguém pode enfrentar sozinho um vírus tão ardiloso e potente. Por isso, são necessários recursos, inteligências, competências, ações e instituições coletivas. Coordenação e coesão geral. É necessária uma cabine de comando, um governo competente que tenha autoridade, uma equipe formada por um vértice político de grande inteligência e apoiada pelos máximos representantes das ciências médicas, da economia, da sociologia, da psicologia social e da comunicação.

Talvez tenhamos aprendido que, perante um vírus desconhecido, assim como diante de um problema complexo, as decisões sobre a pandemia não apenas devem ser tomadas pelas pessoas competentes mas também ser comunicadas de forma unívoca, com autoridade, prontamente, de forma abrangente e clara. Todo o alarmismo, todo o exagero, toda a subestimação é terrível porque confunde as ideias e nos faz perder um tempo precioso. Carência e excesso de informações são parâmetros nocivos. Talk shows superficiais e fake news delirantes levam ao cinismo e à desumanização.

Talvez tenhamos aprendido que, nos países civilizados, o bem-estar é uma conquista irrenunciável. Por sorte e pela sabedoria dos nossos pais, a Constituição italiana de 1948 considera a saúde como um direito fundamental de cada ser humano. Já a reforma sanitária de 1978 instituiu um serviço nacional universal que considera a saúde não como meramente a ausência de doença, mas como o bem-estar físico, psíquico e social completo.

Graças a esse regime de saúde, todos os residentes (e também os turistas) fruem dos cuidados médicos sem qualquer custo. Isso nos possibilitou descobrir e curar prontamente os contágios e reduzir o número de mortes.

No país mais rico e mais poderoso do mundo, os EUA, onde o bem-estar é estupidamente mortificado, os suspeitos de Covid-19 precisam desembolsar o equivalente a 1.200 euros pelo teste. O vírus corona, ao se difundir, causaria uma verdadeira hecatombe entre 90 milhões de estadunidenses que, desprovidos de seguro-saúde, seriam cinicamente rejeitados pelos hospitais.

Toda noite, às 18h, todas as janelas da Itália se escancaram e cada um canta ou toca o hino nacional para agradecer aos médicos e a todos os profissionais da saúde.

A pandemia está nos ensinando que o pensamento de Keynes permanece precioso. Em 1980, o prêmio Nobel Robert Lucas Jr. observou: “Não é possível encontrar nenhum bom economista com menos de 40 anos que se diga ‘keynesiano’. Nas universidades, as teorias keynesianas não são levadas a sério e provocam sorrisinhos de superioridade”.

Hoje, essa crise histórica, com seus mortos e com suas tragédias, se por um lado nos leva à recessão, por outro nos lembra que, para evitar uma crise irreparável, em vez de políticas de austeridade, é preferível dar lugar aos investimentos públicos maciços e “open-ended”, ainda que isso leve ao déficit público.

Talvez tenhamos aprendido tudo isso e várias outras coisas com aquilo que ocorreu fora do recinto doméstico, isto é, entre o governo e todo o povo do país. Entretanto, hoje, a nossa vida está segregada entre as paredes domésticas. Todos estão restritos entre as quatro paredes da própria casa: não só as famílias que vivem em harmonia e acordo, mas também os solitários, os casais em crise e os núcleos familiares em que o diálogo entre pais e filhos há muito tempo andava claudicante.

De repente, o descanso compulsório em casa nos obrigou de forma inédita ao isolamento total, a uma convivência forçada que para alguns parece agradável e tranquilizadora, mas que para outros é invasiva e até opressora. Os mais sortudos conseguem transformar o ócio depressivo em ócio criativo, conjugando a leitura, o estudo, o lúdico com a parcela de trabalho que é possível desempenhar em regime de “smart working”.

Sabíamos teoricamente que essa modalidade de trabalho à distância permite aos trabalhadores uma preciosa economia de tempo, dinheiro, stress e alienação; e às empresas, evita os microconflitos, despesas na manutenção do local de trabalho e promove incremento da eficiência, recuperando de 15 a 20% da produtividade; à coletividade, evita a poluição, o entupimento de trânsito e despesas de manutenção das estradas.

Agora que 10 milhões de italianos, forçados pelo vírus, rapidamente adotaram o teletrabalho, minimizando seu sentimento de inutilidade e os danos à economia nacional, nos perguntamos por que as empresas não haviam adotado antes uma forma de organização tão eficaz e enxuta. A resposta está naquilo que os antropólogos definem como “cultural gap” —lacuna cultural— das empresas, dos sindicatos, dos chefes.

O tempo livre que, até um mês atrás, nos parecia um luxo raro, hoje abunda. O espaço, que nas cidades vazias se dilatou, por sua vez falta nas casas. Por isso, estamos apreciando a ajuda que nos chega da internet, graças à qual, mesmo permanecendo forçosamente distantes, é possível nos reunirmos virtualmente, nos informarmos, nos confrontarmos, nos encorajarmos.

Há alguns anos, Kennet Boulding, um dos pais da teoria geral dos sistemas, comentando a sociedade opulenta, afirmou: “Quem acredita na possibilidade do crescimento infinito num mundo finito ou é louco ou é economista”. E Serge Latouche acrescentou: “O drama é que agora somos todos mais ou menos economistas. Aonde estamos nos encaminhando? Diretamente contra um muro. Estamos a bordo de um bólido sem piloto, sem marcha a ré e sem freios que irá se chocar contra os limites do planeta”. Latouche propõe abandonar a sociedade de consumo com um decrescimento planificado, progressivo e sereno.

A marcha a ré e os freios que a cultura neoliberal se recusou obstinadamente a usar agora foram desencadeados: não graças a uma revolução violenta, mas sim a um vírus invisível que um morcego soprou sobre a sociedade opulenta, obrigando-a a se repensar.

“A Peste” (1947), obra-prima profética de Albert Camus, talvez possa nos ajudar nesse repensar. Naquele romance, a ciência era protagonista, ou seja, o médico Bernardo Rieux, ocupado até o fim, como médico e como homem, de socorrer os contagiados, enquanto “o cheiro de morte emburrecia todos os que não matava”.

Hoje, nós também, como o nosso tão humano irmão Rieux, estamos presos num limbo entre o pesar e a esperança, no qual temos que aprender que “a peste pode vir e ir embora sem que o coração do homem seja modificado”; que “o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, que pode permanecer adormecido por décadas nos móveis e nas roupas, que espera pacientemente nos quartos, nas adegas, nas malas, nos lenços e nos papéis, que talvez chegue o dia em que, infortúnio ou lição aos homens, a peste acordará seus ratos para mandá-los morrer numa cidade feliz”.

Domenico De Masi, sociólogo italiano, é autor dos livros "Ócio Criativo" e "O Futuro do Trabalho".         Tradução de Francesca Cricelli.  Fonte:www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/03/22









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