Médico formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, mestre em medicina social pela The London School of Hygiene & Tropical Medicine e doutor em epidemiologia pela University of London, Kalache é um dos mais renomados especialistas em envelhecimento no mundo, com atuação direta nessa área há mais de quatro décadas, boa parte delas vivida na Inglaterra, onde fixou residência por 34 anos. “Em 1975, fui fazer minha escolha de carreira quando não se falava de envelhecimento.”
Mas os títulos não param por aí; entre tantas outras coisas, ele também foi diretor do Departamento de Envelhecimento e Saúde da Organização Mundial da Saúde (OMS) – ele permanece no conselho consultivo –, de 1994 até sua aposentadoria, em 2008, e é hoje presidente do Centro Internacional de Longevidade Brasil, além de consultor internacional, pianista e chef de cozinha – esses dois últimos atributos ele desenvolve apenas nas horas vagas e entre amigos.
Seu retorno ao país natal se deu também em 2008, dois anos após a criação, ainda dentro da OMS, do importante e aclamado projeto Cidade Amiga do Idoso, que já congrega mais de 500 cidades ao redor do globo, ao mesmo tempo que o entristece saber que nenhuma capital brasileira está na lista. “O poder público não tem demonstrado a seriedade necessária para responder à evolução da longevidade e a urgência que isso impôs. Nem mesmo o setor mais óbvio, que é a saúde.”
A volta ao Brasil foi motivada principalmente para estar ao lado de sua mãe, que apresentava naquele período os primeiros sinais de Alzheimer, doença que evoluiu gradativamente, embora Lourdes Kalache, hoje com 99 anos, ainda preserve determinadas funções cognitivas e a inteligência, já que sempre foi uma mulher culta. “Se você tem muita reserva, você tem mais para gastar”, ressalta.
Sua mãe é mais uma moradora do bairro brasileiro que já apresenta altos índices de envelhecimento, com 30% dos moradores na terceira idade: Copabacana. A porcentagem iguala a região carioca ao Japão, país mais envelhecido do globo. Para Lourdes, para Alexandre e para todas as outras pessoas que já se encontram na terceira idade ou irão chegar, o envelhecer bem necessita ser pautado pelo que o especialista chama de envelhecimento ativo, ou seja, a garantia e manutenção de quatro pilares: saúde, aprendizagem ao longo da vida, participação e segurança/proteção. “A gente quer envelhecer com mais saúde e mais conhecimento, para ter oportunidade de participar da sociedade”, enfatiza o especialista, que há uma década realizou uma pesquisa, também em Copacabana, pela qual descobriu que o melhor amigo do idoso é o porteiro, motivando-o a criar o programa Porteiro Amigo do Idoso, que já expandiu para fora dos limites do Estado do Rio. “Ele sabe como os moradores estão, quem tem dificuldade, quem está ficando confuso, deprimido, isolado; ele avisa os filhos sobre algo que percebeu nos pais. O que a gente faz hoje? A gente treina o porteiro para que não seja só amigo, mas eficaz naquilo que ele faz.”
O envelhecimento crescente da população brasileira vai de encontro também a uma outra questão primordial: como manter uma Previdência Social saudável no futuro mediante menos contribuintes? O assunto vem causando muitas controversas atualmente, quando tramita entre os deputados a PEC 287/16 – Reforma da Previdência, a qual deve sofrer alterações em relação ao texto original. Kalache ressalta que o que temos hoje ainda é, de alguma forma, pautado pelo primeiro modelo de aposentadoria pública, criado em 1880, por Otto von Bismarck (1815-1898), na Alemanha. “Naquela época, a expectativa de vida lá era a mais alta do mundo, de 46 anos. O trabalho era repetitivo, mecanizado, exigia força física. E Bismarck, muito vivo, percebeu que os trabalhadores que conseguiam chegar aos 70 anos não tinham mais energia e estavam ganhando salário integral. Então, decidiu mandá-los para casa, pois só iam viver mais dois ou três anos, com um dinheirinho, que é a tal da pensão. Isso foi instituir a previdência, depois copiada mundo afora. O que é inaceitável é que hoje, 130 anos depois, nós estejamos fazendo mais ou menos a mesma coisa.”
Estamos em um momento extremamente delicado no Brasil, em que se discute a reforma da Previdência. Evidentemente, tal medida é fundamental para a saúde do país, porém, traz em torno de si questões controversas. Além disso, há ainda o risco de que o texto da reforma seja alterado, o que reduziria seu valor. Como você observa essa situação? Com muita preocupação. A própria crise que estamos atravessando agrava a urgência para encarar o envelhecimento como uma certeza deste país. A expectativa de vida continua aumentando, apesar de toda a crise da condição de vida do brasileiro, e as taxas de fecundidade continuam muito baixas. Desde os anos 2000, nós temos taxas de fecundidade abaixo da reposição. Isso significa que há menos adolescentes, menos crianças e já há menos adultos, que são a base para poder tornar o país mais produtivo, mais viável. Daqui até 2050, nós vamos aumentar a proporção de idosos de em torno de 13,5% para mais de 30%. Para você ter uma ideia da magnitude desse desafio, hoje temos cerca da metade da proporção de idosos que o Canadá tem, que é de 25% a 26%. E no ano 2050, o Brasil estará mais envelhecido que o Canadá. Só que o Canadá é um país que tem a casa em ordem, tem boa saúde pública, investimento em infraestrutura, e o governo de lá toma há anos uma série de medidas muito bem coordenadas no sentido de políticas sustentáveis em torno do envelhecimento. E nós estamos aqui, tímidos, acanhados, em parte porque são tantos os problemas que o tal do envelhecimento sempre parece ser uma questão para amanhã. Não, se nós não tivermos uma política que eu chamo de envelhecimento ativo, o qual tem certas premissas, estaremos perdidos.
Ou seja, sem uma política adequada, a probabilidade é que, não só estejamos sempre atrasados, como as necessidades dos idosos só cresçam. É isso? O que falta é o compromisso real com o grupo que mais cresce da população. Precisamos de investimento em cuidados e na atenção primária e secundária, nos hospitais, na comunidade... Precisamos de prevenção, promoção da saúde. Isso faz com que a gente tenha menos necessidade de ficar investindo às cegas. Por exemplo, se você não prevenir uma hipertensão que surja em uma pessoa aos 35 anos, como ela não encontra resposta na atenção primária, a doença se complica e aquilo que era hipertensão passa a ser uma hipertensão com sequelas agravadas. Depois, de repente essa pessoa aos 60 anos ou aos 57 ou aos 75 vai ter um derrame que é consequência daquela hipertensão que poderia ter sido prevenida, mas não teve o medicamente certo, a atenção correta, a atitude adequada. Mas, quando ela complica, irá custar muito mais caro. E, em vez de você tratar apenas uma hipertensão bem controlada, que não dá problemas maiores, você irá tratar de um derrame que pode matar, mas que também pode fazer com que a pessoa sobreviva com sequelas pelo resto da vida, ou necessite de uma internação, uma institucionalização, porque ela não tem uma retaguarda na família. Então, ela passa a ter uma necessidade muito maior por falta de uma perspectiva de que o melhor que pode nos acontecer é envelhecer.
Mas como mudaremos esse cenário, se o país continua a avançar de precipício em precipício? Por exemplo, hoje funciona assim: o homem está na escola, fica lá um bom tempo, aprende um ofício e começa a trabalhar em tempo integral. A certa altura da vida, aos 50 ou 60 anos, ele ainda está trabalhando, cuida dos pais, da sogra, do sogro e em determinado momento se aposenta. É abrupto. Ele trabalha até às 17 horas de hoje e amanhã acorda aposentado. E a palavra aposentado é perversa, que vem de aposento, o que lembra aqueles cômodos no fundo daquela casa antiga, escondidos. Você não tem mais direito de participar da sociedade. Mas temos de fazer a vida mais interessante, mais colorida. Para isso, vamos pegar uma mulher agora como exemplo do que seria esse modelo correto. Ela começa curtindo a vida, estudando, aprende um ofício, começa a trabalhar em tempo integral. Daí vai ter filho, mas com apoio do seu empregador, do Estado, do governo, porque é do interesse para toda a sociedade que as mulheres tenham filho. Ter filho hoje, em um país como o Brasil, é fundamental para a nação ser viável. Mais tarde, aos 45 anos, a pessoa perceberá que chegou ao meio da vida e irá tirar um ano sabático para descobrir se possui ainda a mesma vocação. Daí ela volta a trabalhar cheia de gás e, aos 58 anos, toma um ano para cuidar de sua mãe, que de repente está com câncer terminal. Então ela volta ao trabalho e vai, gradativamente, diminuindo o ritmo, cuidando mais da vida. Aos 75 anos vai fazer um PhD, que sempre quis fazer e não teve tempo e nem dinheiro, e será ela que decide a hora de parar, não será compulsório. Alguma coisa tem de se ajeitar e, de preferência, duas respostas: você estimular as mulheres a terem filhos, dando apoio a elas, e ao mesmo tempo parar com aposentadoria compulsória, na média com 54 anos, porque esse país é insustentável se continuar assim.
Como ter esperanças? Você é de uma geração muito mais nova que a minha, mas houve um grande sucesso teatral em meio à ditadura, chamava-se Brasileiro, profissão esperança. Nossa profissão é ter esperança. E, de alguma forma, nós realmente temos essa esperança, mas pela primeira vez estou vendo-a afundada. Vejo hoje jovens sem esperança, sem vontade, sem otimismo. Quem está podendo vem saindo do país e quem está saindo são os jovens que têm uma formação melhor. Você está tirando talentos do país, o que é muito ruim. Os países desenvolvidos primeiro enriqueceram para depois envelhecerem. Eles têm, sobretudo, uma mão de obra muito qualificada, para poder ser mais produtivo. Aqui, a base da pouca produtividade está na falta de ensino e entra governo, sai governo, de diferentes partidos, desde a ditadura e até antes, e nós não vemos a ênfase necessária em educação. E a educação é a pedra fundamental. Digo que quem tem hoje entre 27 e 37 anos será o idoso de 2050. Essa pessoa vai envelhecer nas próximas décadas e vai depender de como ela esteja preparada para poder chegar lá. Até porque, com a revolução da longevidade, a vida deixa de ser uma corrida de 100 metros para ser uma maratona. E qualquer pessoa que fez uma maratona sabe que você só chega ao fim dela em boa forma se você tem habilidade, se treina e sabe o que está fazendo. Antes, quando eu nasci, a expectativa de vida era de 43 anos. Hoje, estamos chegando aos 77, são 34 anos a mais de vida, e não só de velhice. Você tem de se preparar para essa vida, que tem várias etapas. Você precisa estar dentro de um ambiente, de um entorno social que te dê apoio para você poder envelhecer bem.
Isso é o que você chama de envelhecimento ativo, que prioriza oportunidades de saúde, participação e segurança para a garantia da qualidade de vida à medida que as pessoas envelhecem. Não seria uma utopia diante desse cenário atual? Não, se fosse utopia, você não veria em vários países as políticas adequadas para o envelhecimento ativo. Se fosse utopia, você não veria pessoas que podem exercer essas escolhas, envelhecendo de forma ativa e plena. Você tem exemplos no Brasil, pessoas que se cuidam, pessoas que têm acesso, que têm empoderamento, e esse empoderamento vem não só do dinheiro, mas de você ter informação, de você ter um nível para se sentir mais apto para exercer suas escolhas e ter mais autonomia. Você quer envelhecer não só de forma independente para as tarefas do dia a dia, mas, sobretudo, você quer ter autonomia, que é viver sua vida de acordo com suas regras, de acordo com suas escolhas.
O bem-sucedido projeto Cidade Amiga do Idoso foi uma ideia sua quando você ainda era diretor do Programa Global de Envelhecimento e Saúde da Organização Mundial da Saúde. Como se deu isso? Em 2005, o Congresso Internacional de Gerontologia, que ocorre a cada quatro anos, foi no Rio. Queria que as pessoas fechassem os olhos no Congresso e dissessem uma palavra que lembrassem sobre Copacabana. Disseram homem sarado, mulher de biquíni, Réveillon. E eu disse: é isso também, mas Copacabana hoje tem 30% de idosos. Percebi ali que isso daria um projeto internacional. Em 2006, consegui verba do Canadá para trazer pesquisadores e trabalhar com o poder público de dez cidades em torno de oito dimensões que têm importância para todos: transporte, espaço público, acesso a informação, serviços, trabalho... Com essas oito dimensões, a gente cria o Protocolo de Vancouver de como fazer o projeto da Cidade Amiga do Idoso, já com dados de 33 cidades. Lançamos o guia em outubro de 2007, porque era quando eu fazia 62 anos e iria me aposentar. Depois disso, fui para Nova York para conversar com o [Michael] Bloomberg, que era o prefeito, trabalhando no New York Academy of Medicine. Passei dois anos lá, não em tempo integral, para começar o Age-Friendly NYC, que hoje está bombando, um dos grandes modelos desse movimento. E isso está dando certo no mundo. Vi no site da OMS que já são 500 cidades registradas. A última foi Paris.
E no Brasil? Trouxe a ideia para o Brasil e não consigo realizar, porque não tem interesse do poder público. Em São Paulo, consegui convencer o governador a fazer o Estado Amigo, mas infelizmente destrambelhou ou está sendo mal-feito, sem a seriedade que deveria ter. Dá certo, eu sei que dá certo. Aqui no Brasil, tem um modelo legal sendo criado com a CPFL, que está dando apoio para se fazer um estudo e protótipo adequados. E trabalhamos bem com pequenas cidades, como Veranópolis, no Rio Grande do Sul, e em Jaguariúna, em São Paulo. E no Rio, minha cidade, nada. Nível federal menos ainda. Essa falta de seriedade é crônica, não é questão nem de você ter recursos, mesmo que haja da iniciativa privada.
Ao pensarmos no envelhecimento, se faz mais concreta a consciência da morte. Por que a sociedade ainda tem dificuldade de lidar com esse assunto? A única coisa certa na vida é que a gente morre. Mas a única coisa certa na sociedade é que ela não quer falar sobre morte. Mais de cem vezes, ao chegar a um grande auditório, pedi para as pessoas fecharem os olhos e pensarem com qual idade vão morrer. Primeiro, as pessoas riem. Nunca pensaram nisso. A imensa maioria das vezes elas acham que vão morrer a partir dos 75, 80 ou 90 anos. Errado. Então faço a segunda pergunta: do que vão morrer? Daí falo: “Alguém acha que vai morrer de derrame?”. Às vezes, tem um ou dois que levantam a mão. “E de doença de Alzheimer?”, ninguém. “E de câncer?”, tem sempre um pouco mais que levanta a mão, uns 12 ou 13 em um grupo de 50. E questiono: “Quem acha que vai morrer de um ataque cardíaco?”. A grande maioria levanta a mão. Daí brinco: “Vocês são profissionais da saúde e não aprenderam que isso é exceção, que menos de 10% das mortes são essas idealizadas?”. Então faço uma terceira pergunta: “E onde acham que vão morrer?”. Maciçamente, ninguém acha que vai morrer em hospital geriátrico, asilo, residência para idosos, nada disso. Vão morrer em casa, morte súbita, aos 90 anos. Por isso digo: “Sinto muito em decepcioná-los, mas a maioria de vocês terá uma morte em instituição, em hospital, precedida de semanas, meses, às vezes anos, doença crônica, incapacitante, que vai necessitar de cuidados e, preparem-se, vocês precisam estar preparados para o pior. Se o melhor vier e vocês estiverem igual passarinho, voando, e morrerem, sorte, maravilha.
E, ao falar de morte, preciso perguntar sobre um tema sempre controverso: a eutanásia. Você é a favor?A eutanásia é outro problema, que entra em um valor que não é só ético, mas também religioso. Como médico, confesso, quando cliniquei vi muita gente morrendo, muita criança morrendo, porque fui trabalhar em um hospital de doenças infecciosas. E eu não teria a paz de espírito de intervir, que através de mim a pessoa terminasse com sua vida. Mas faria para mim, porque é a minha autonomia, minha decisão. Há uma incoerência nisso? Há. Convivo com essa discrepância. Não faria pelos outros o que faria para mim.
Mas por tudo que você me disse e pela alegria que tem, me parece que a vida vem sempre em primeiro lugar, no seu caso. Sim, a vida é muito sagrada. Porém, confesso que não teria estrutura se estivesse em um processo no qual me visse completamente em uma armadilha do meu próprio corpo. Daí eu gostaria dessa intervenção. Mas também não tomei nenhuma medida para expressar esse tipo de vontade. São as contradições da vida longeva. Um recado que gostaria que fosse passado é que essa vida mais longa te dá algumas oportunidades que quem morre cedo não tem, pois, provavelmente, não teve tempo de digerir as dificuldades, de desenvolver uma filosofia de vida, não teve a iminência de saber que estava chegando perto do fim. Então, essa vida longeva nos dá a oportunidade para três coisas que são fundamentais: perdoar, se perdoar e pedir perdão. Quando você faz isso, porque envelheceu, você alcançou uma plenitude mesmo, que é muito especial. Acho que o mundo será melhor porque ele está envelhecendo e você terá mais pessoas que terão tempo de pedir perdão e se perdoar. Há contradições, mas assim é a vida.
Por: Gustavo Ranieri Fotos: Bruno Veiga Em novembro de 2017
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