Pular para o conteúdo principal

“Meus começos e meu fim”

Em Meus Começos e meu fim, Nirlando diz: “Sou velho, mas não sou o velho que eu, desde muito cedo, sonhava ser. O velho de aposentadoria, no sossego da leitura infindável, com o conhaque no antebraço da poltrona, mal arranha a caricatura do velho que virei…”

As pessoas, ao morrer, vivenciam um estrépito de luzes – é o que dizem os espiritualistas. Eu, ali, frente a uma revelação de trevas, como que ingressava na penumbra fosca de um corredor sem saída.”

Em 2016, aos 68 anos, Nirlando Beirão, recebeu o diagnóstico de que estava com ELA – Esclerose Lateral Amiotrófica. Jornalista e escritor, Nirlando foi personagem importante da última fase de ouro do jornalismo brasileiro. Trabalhou nos mais importantes veículos da grande imprensa, desde que estreou no jornal A Ùltima Hora em 1967. Conviveu com os icônicos jornalistas das décadas de 60 a 2010. Foi correspondente estrangeiro em Nova York, fez cobertura de rebeliões e revoluções, entrevistou importantes figuras da política e da cultura, foi agraciado com a Medalha da Inconfidência Mineira e foi nomeado Chevalier des Arts e des Lettres.

Entre o passado que assoma, carregado de culpas, frustações e de buracos, e o futuro de enigma insondável, sorvo, no presente, o duvidoso privilégio de chorar todos os dias a minha própria morte.

… Mas é o passado que me subjuga, dia e noite, enumerando, como numa penitência sem remissão, tudo aquilo que nunca fiz e que talvez devesse ter feito – e que nunca mais farei. 

A perspectiva da morte, anunciada pelo diagnóstico de ELA, fez com que Nirlando Beirão assumisse o compromisso de resgatar a memória de sua ancestralidade   escrevendo sobre a história e o estigma de sua origem familiar. Seu avô, o português António  Beirão, veio para o Brasil na primeira década do século XX, para ser o padre da paróquia de Oliveira em Minas Gerais. Aqui protagonizou história com semelhanças à relatada em duas joias da cultura brasileira, de autoria de dois Andrade, o poeta Carlos Drummond e o cineasta Joaquim Pedro – O Padre e a Moça. O padre António Beirão se apaixonou pela jovem mineira Esméria e escolheu optar pelo amor e abandonar o sacerdócio. A igreja católica excomungou a família que se formava até a terceira geração.

Para o filósofo e historiador Paul Ricouer, o resgate da memória é um método para não deixar cair no esquecimento a história das famílias e da sociedade. Em “Meus começos e meu fim”, Nirlando Beirão assume para si a tarefa deste resgate.

A narrativa é entremeada pela memória da família Beirão e pelo depoimento da evolução da doença degenerativa. Sempre com um toque de graça.

Diferentemente do que pregam as Sagradas Escrituras com sua carranca de dogma, o homem levou alguns milhões de anos para descer das árvores, erguer-se no solo e passar a se locomover sobre duas pernas. Milhões de anos. Eu não vou precisar de mais que alguns meses para voltar ao estágio inicial.

Certa noite, meu polegar esquerdo decidiu proclamar a sua independência. Creio que já estivesse dando sinais de rebeldia, mas de repente passou a se movimentar, em espasmos regulares, de acordo com seus próprios e intransferíveis desígnios. Perdi o controle.

António Beirão, nascido na pequena aldeia de Mangualde, ainda jovem foi estudar no seminário católico de Viseu, “…aprisionado naquelas masmorras de fé silenciosa e mortificada…” Na vida ascética do seminário, se tornou amigo de um outro António que também lá estudava. E como ele, optou por não seguir o sacerdócio. António de Oliveira Salazar, se manteve celibatário, como um padre. Mas teve o destino traçado para ser o ditador de Portugal por 36 anos. Em meados dos anos 50, António Beirão e sua esposa Esméria, foram fazer uma longa viagem nostálgica a Portugal onde foram recebidos na morada civil de Salazar, localizada numa colina com vista para o rio Dão. Esméria ficou encantada com os hábitos modestos, daquele que segunda ela,  não poderia ser o homem tão odiado por seus adversários. O seu encanto atingiu o clímax quando Salazar se levantou e foi pegar uma manta que ele mesmo colocou sobre as pernas dos hóspedes.

Relatos como este, comprovam como António Beirão deu a volta por cima e resgatou sua dignidade, teoricamente perdida ao abandonar o sacerdócio. E como seu neto nos oferece, como um mestre, a história do seu passado e do seu presente, onde, “A morte é hoje o tema da minha vida.”

No outro roteiro da narrativa, Nirlando remexe no seu “Baú de Ossos”. Como memorialista de deliciosa prosa, fala das Minas Gerais e da mineirice. Da trajetória familiar do menino de Belo Horizonte. Percorrendo desde a Rua Ramalhete, celebrada na canção de Tavito, à Ouro Preto, uma cidade de “beleza metafísica”.

Em sua casa, entre fisioterapeutas, fonoaudiólogos e outros profissionais de socorro e recuperação, o autor relembra o relacionamento com a filha, enteados e agora com os netos. E reflete sobre a velhice:

Sou velho, mas não sou o velho que eu, desde muito cedo, sonhava ser. O velho de aposentadoria, no sossego da leitura infindável, com o conhaque no antebraço da poltrona, mal arranha a caricatura do velho que virei. Leio profusamente, contudo a cabeça não se aquieta, a alma trôpega se intromete entre as frases, a angústia martela a sintaxe. Ainda assim, insisto e busco o encanto da palavra alheia.   

Uma leitura imperdível sobre o “sentido da vida”. Ou como o inesperado te dá uma rasteira e derruba suas quase certezas e convicções.    

Livro Meus começos e meu fim  Autor: Nirlando Beirão Editora: Companhia das Letras/2019

Comentários

  1. Um ícone, um grande jornalista nos veículos de comunicação onde trabalhou. Um jeito de escrever claro, direto. Um exemplo para os estudantes de jornalismo e para profissionais nas décadas de 60/70.

    ResponderExcluir
  2. Heloisa, sempre é uma alegria a tua presença aqui. Agradecida, Abração.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

O Dente-de-Leão e o Viva a Velhice

  A belíssima lenda do  dente-de leão e seus significados Segundo uma lenda irlandesa, o dente-de-leão é a morada das fadas, uma vez que elas eram livres para se movimentarem nos prados. Quando a Terra era habitada por gnomos, elfos e fadas, essas criaturas viviam livremente na natureza. A chegada do homem os forçou a se refugiar na floresta. Mas   as fadas   tinham roupas muito chamativas para conseguirem se camuflar em seus arredores. Por esta razão, elas foram forçadas a se tornarem dentes-de-leão. Comentário do Blog: A beleza  do dente-de-leão está na sua simplicidade. No convívio perene com a natureza, no quase mistério sutil e mágico da sua multiplicação. Por isso e por muito mais  é que elegi o dente-de-leão  como símbolo ou marca do Viva a Velhice. Imagem  Ervanária Palmeira   O dente-de-leão é uma planta perene, típica dos climas temperados, que espontaneamente cresce praticamente em todo o lugar: na beira de estrada, à bei...

Os dentes e o contato social

Antônio Salazar Fonseca é membro da Sociedade Brasileira de Odontologia Estética Crédito: Juliana Causin/CBN. sábado, 19/09/2015, 09:30  'Ausência dos dentes leva à ruptura do contato social', afirma dentista. Antônio Salazar Fonseca explica que a prevenção é fundamental para manter a saúde da boca. Segundo ele, as próteses têm tempo de vida útil, portanto os usuários devem renová-las. http://cbn.globoradio.globo.com/programas/50-mais-cbn/2015/09/19/AUSENCIA-DOS-DENTES-LEVA-A-RUPTURA-DO-CONTATO-SOCIAL-AFIRMA-DENTISTA.htm "É importante que qualquer pessoa visite o dentista de seis em seis meses. Em caso de próteses, elas devem ser reavaliadas a cada dois anos, o que, geralmente, não acontece. Maioria da população não tem dentes naturais Com as próteses, o problema cresce ainda mais. A maioria das pessoas não tem o hábito de fazer a manutenção constante regularmente e, com o passar dos anos, elas vão ficando desadaptadas. "Muitos deixam até de usá-las e acabam ingerindo...

‘Quem anda no trilho é trem de ferro, sou água que corre entre pedras’ – Manoel de Barros

  Dirigido pelo cineasta vencedor do Oscar, Laurent Witz, ‘Cogs’ conta a história de um mundo construído em um sistema mecanizado que favorece apenas alguns. Segue dois personagens cujas vidas parecem predeterminadas por este sistema e as circunstâncias em que nasceram. O filme foi feito para o lançamento internacional da AIME, uma organização de caridade em missão para criar um mundo mais justo, criando igualdade no sistema educacional. O curta-animação ‘Cogs’ conta a história de dois meninos que se encontram, literalmente, em faixas separadas e pré-determinadas em suas vidas, e o drama depende do esforço para libertar-se dessas limitações impostas. “Andar sobre trilhos pode ser bom ou mau. Quando uma economia anda sobre trilhos parece que é bom. Quando os seres humanos andam sobre trilhos é mau sinal, é sinal de desumanização, de que a decisão transitou do homem para a engrenagem que construiu. Este cenário distópico assombra a literatura e o cinema ocidentais. Que fazer...

Chapéu Violeta - Mário Quintana

Aos 3 anos: Ela olha pra si mesma e vê uma rainha. Aos 8 anos: Ela olha para si e vê Cinderela. Aos 15 anos: Ela olha e vê uma freira horrorosa. Aos 20 anos: Ela olha e se vê muito gorda, muito magra, muito alta, muito baixa, muito liso, muito encaracolado, decide sair mas, vai sofrendo. Aos 30 anos: Ela olha pra si mesma e vê muito gorda, muito magra, muito alta, muitobaixa, muito liso muito encaracolado, mas decide que agora não tem tempo pra consertar então vai sair assim mesmo. Aos 40 anos: Ela se olha e se vê muito gorda, muito magra, muito alta, muito baixa, muito liso, muito encaracolado, mas diz: pelo menos eu sou uma boa pessoa e sai mesmo assim. Aos 50 anos: Ela olha pra si mesma e se vê como é. Sai e vai pra onde ela bem entender. Aos 60 anos: Ela se olha e lembra de todas as pessoas que não podem mais se olhar no espelho. Sai de casa e conquista o mundo. Aos 70 anos: Ela olha para si e vê sabedoria, risos, habilidades, sai para o mundo e aproveita a vida. Aos 80 an...

Se puder envelheça

Os poetas tem o dom de saber colocar em palavras coisas que sentimos e não sabemos explicar, quando se trata de velhice as opiniões divergem muito, e como poeta, talvez Oswaldo Montenegro te convença a olhar para o envelhecimento com outro olhar, mais gentil com sua história, mais feliz com seu presente. Leia: “A pergunta é, que dia a gente fica velho? Não vem dizer que ‘aos poucos’, colega, faz 5 minutos que eu tinha 17 anos e fui-me embora de Brasília, pra mim meu primeiro show foi ontem, e hoje eu tô na fila preferencial pra embarcar no avião. Tem um garoto dentro de mim que não foi avisado de que o tempo passou e tá louco pra ter um filho, e eu já tenho netos. Aconteceu de repente, o personagem do Kafka acordou incerto, eu acordei idoso, e olha que eu ando, corro, subo escadas e sonho como antes. Então o quê que mudou? Minha saúde e minha energia são as mesmas, então o quê que mudou? Bom, a unica coisa que eu sei que mudou mesmo foi o tal do ego, a gente vai descobrindo que não...