Comentário do Blog: A seguir a forma com que a editora Intríseca apresente o novo livro de Andrea Pachá a mim só cabe dizer que comprei, li, gostei e recomendo.
Depois de quase vinte anos à frente de uma Vara de Família, cuidando de casos de divórcios, pensão, guarda e convivência familiar, a juíza Andréa Pachá se viu diante de um novo desafio: assumir uma Vara de Sucessões, onde lidaria com julgamentos de inventários, testamentos e curatelas. É a partir das experiências dessas audiências que Pachá desenvolve seu novo livro Velhos são os outros.
Conhecida também por A vida não é justa (2012) e Segredo de Justiça (2014), livros que deram origem à série Segredos de Justiça, do Fantástico, Andréa Pachá tem um talento singular para transformar vivências no tribunal em ficção. Em seu primeiro livro lançado pela Intrínseca, ela narra histórias delicadas, bem-humoradas e emocionantes sobre a velhice. Velhos são os outros chega às livrarias a partir de 1º de novembro. Leia um trecho:
Velhos são os outros
Viver em uma sociedade que incensa a juventude e nega a doença, a infelicidade, a deterioração e até mesmo a morte não é exatamente a melhor maneira de assimilar a passagem do tempo e os impactos que ela produz. Não desejamos morrer jovens, naturalmente. No entanto, a maior longevidade possibilitada pela ciência nas últimas décadas tem introduzido conflitos complexos no dia a dia. Problemas que, na perspectiva da Justiça, vão desde o abandono material e afetivo de familiares até a disputa de curatela entre irmãos, passando pela escolha de tratamentos interventivos e pela liberdade para casar-se ou namorar. A excessiva judicialização da vida tem nos enredado em um fenômeno de infantilização emocional. A idealização de um juiz herói, capaz de estancar nosso desamparo, é na maior parte das vezes frustrada pela realidade.
Depois de quase duas décadas decidindo conflitos de divórcios, pensão, guarda e convivência familiar em uma Vara de Família, fui transferida para outro Juízo, responsável pelos julgamentos de inventários, testamentos e curatelas. Não foi uma mudança fácil. As mudanças nunca são. Mesmo aquelas que programamos, idealizamos. Aceitar transformações é um treino ao qual me dedico com relativo sucesso, mas como conviver com os problemas que chegam com a morte e o envelhecimento? Como representar uma juíza imparcial quando eu mesma experimento as angústias e os medos, cercada de afetos rumando para as curvas finais da vida?
A velhice, um futuro distante e improvável, insiste em se mostrar naquilo que tem de pior. São problemas decorrentes do abandono, do desamor, do esquecimento, que se transformam em processos e me assombram noite e dia. Aprendi cedo que somos capazes de nos resignar com a morte, porque há nela um princípio inegociável de igualdade. Morremos todos. Não há luta de classes, de gênero, de religião que se sobreponha a tal realidade. A velhice, no entanto, não é igual. Muito menos coroa algum princípio de justiça.
Nascemos e morremos sozinhos. Eis a inescapável condição humana que nos liberta e nos aprisiona. Com ou sem a nossa autorização ou desejo, o tempo age, o corpo gasta, os neurônios se desconectam — ainda que sem rugas aparentes, domadas pela tecnologia e pelas intervenções médicas e estéticas —, e caminhamos para o terreno desconhecido do fim. Um caminhar lento, às vezes imperceptível, mas que compreende de forma definitiva o princípio da igualdade que nos irmana e identifica.
O constante paradoxo com o qual me defronto implica garantir a autonomia dos velhos e, ao mesmo tempo, atentar para que, em razão de sua vulnerabilidade e carência, eles não sejam compelidos a fazer ou deixar de fazer alguma coisa. Embora envelheçamos desde o dia da concepção, não nos damos conta do processo natural e acabamos por rejeitá-lo, invisibilizando a velhice e associando-a à perda de capacidade, de vontade, de desejos. Ao fim dos projetos e sonhos. Quando comecei a trabalhar com processos relacionados ao envelhecimento e à morte, percebi não só quanto eu havia envelhecido, mas também quanto estava cercada de velhos por todos os lados. Familiares, amigos, ídolos, referências éticas e estéticas. Todos com mais de 70 anos. Meu olhar viciado continuava enxergando os outros com, no máximo, meio século de vida, tempo esse que eu mesma já vivi e ultrapassei.
Sem saber como constatar o tempo do envelhecimento e tentando compreendê-lo sob a lente da objetividade, durante um café da manhã, curiosa, perguntei à minha mãe:
— Quando é que você se percebeu velha?
Aos 77 anos, e surpresa com a questão, ela encerrou a conversa:
— Nunca! Eu ainda não sou velha!
Tentando amenizar a pergunta e fazer com que ela pudesse responder sem preconceito à minha inquietação, prossegui:
— Mas, mãe… Falo da velhice como idade, não como sentimento, e sim como um dado etário. A gente é criança e torce pra virar adolescente logo. Daí nos sentimos jovens, e em algum momento percebemos que somos adultos. Então vem a velhice.
— Andréa — ela ponderou —, queremos ser adolescentes para experimentar as novidades que a vida traz. Queremos amadurecer para ter autonomia, segurança, liberdade. Mas quem quer envelhecer? Depois que a velhice chega, o que vem?
A pergunta foi seguida de silêncio. Sem resposta, diante do desconhecido e sentindo certa melancolia, entendi que o tempo nos ignora. Deixa marcas e acúmulo de passado. É esse acervo que nos define como velhos.
Para a lei brasileira, idoso é quem tem mais de 60 anos. Nenhuma outra classificação etária é tão abrangente e tão desigual. Tanto que já promulgaram nova lei, estabelecendo que os mais velhos ainda, com mais de 80, devem ser atendidos com prioridade dentro da prioridade. Nenhuma norma muda a realidade, e a menos que se torne efetiva residirá apenas na prateleira das boas intenções.
Para diversas tribos e civilizações, a idade era sinônimo de experiência, poder, sabedoria. Na sociedade do capital e do consumo, o velho só será respeitado enquanto integrar o sistema de produção e gerar renda. Assim, na contemporaneidade, pressionados pela segregação, os mais velhos devem se recusar a envelhecer, adoecer e morrer.
Iluminar a velhice, de forma clara e corajosa, é fundamental. João Gilberto, em sussurro afinado, me ensinou, pela letra de Ary Barroso, que “a vida é uma escola, onde a gente precisa aprender a ciência de viver para não sofrer”. Norberto Bobbio, filósofo italiano, esclarece que “o acaso explica muito pouco, a fatalidade explica demais. Só a crença na vontade livre, se é que a liberdade de querer não é também uma ilusão, nos ajuda a acreditar que somos donos de nossa própria vida”.
Aos poucos, fui percebendo que aquela realidade de afetos, ódios, solidariedade, ressentimento, humor, perdas e aceitação que eu via durante as audiências envolvendo os idosos pouco ou nada diferia de tantas outras realidades que nos acompanham existência afora. Lentamente, e sem que eu percebesse, a angústia e a sensação de impotência que eu sentia foram cedendo espaço à escuta cuidadosa. Esqueci o medo e me vi, atenta, assimilando sentimentos, emoções e até projetos nascidos das vozes das inúmeras pessoas que passam pelas audiências que conduzo. Me vi, também, atenta às muitas outras velhices que, desprovidas de renda ou patrimônio, nem sequem chegam à Justiça.
Essas vozes de um passado anterior ao meu, e que de alguma forma me definem e me projetam, foram transformadas neste livro em histórias de ficção, em personagens imaginados e em depoimentos inventados que pacificaram minha alma e me fazem enxergar a velhice como um tempo potente, intenso e delicado.
Todos envelhecemos. E sempre haverá mais tempo adiante. Os que estão atrás não nos alcançarão, e nós não alcançaremos os que nos antecedem. Nessa estrada que não terminará enquanto existirmos, seguiremos, velhos, olhando para outros velhos e nos sentindo menos velhos. Depois da velhice vem mais vida. E mais vida. E mais vida.
Velhos são os outros. Até o fim.
Em outubro/2018 Fonte: www.intrinseca.com.br/blog/
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