Envelhecer com propósito retarda limitações físicas e declínio cognitivo
Sociedades se beneficiam da longevidade quando enxergam idosos como capital humano experiente, dizem especialistas
Todas as manhãs, Olga Quiroga, de 80 anos, se levanta às 5 horas para sair do Jardim São Savério, na região sudeste de São Paulo, e ir ao Largo São Francisco, no centro. Quando chega ao edifício, cumprimenta o porteiro que gira a manivela do antigo elevador para levá-la ao quarto andar. É ali, na sala número oito, que funciona o pequeno escritório da pedagoga aposentada. Dezenas de pastas e folhas de papel almaço escritas à mão tentam catalogar os cerca de 600 idosos que esperam por uma vaga em residências compartilhadas. Há três décadas, desde que deixou o mercado de trabalho, Olga se dedica ao movimento por moradias.
A chilena radicada no Brasil não sabe, mas segue à risca orientações de estudos recentes sobre longevidade. Envelhecer com propósitos e se manter ativo, com uma rede sólida de relacionamentos, adia a deficiência física e o declínio cognitivo, além de diminuir as chances de desenvolver depressão. Os benefícios podem, ainda, se tornar coletivos. “Sociedades que enxergam a população idosa como capital humano experiente, e não um fardo, conseguem redirecionar esses indivíduos para posições em que eles se mantêm produtivos”, diz Paul Irving, presidente do Milken Institute, organização americana de estudos econômicos e de saúde.
https://youtu.be/OhUjhBFbNuA?list=PLOymIuyePvyHls9UBmuSZvcX_A0WLS-hEA ideia popular que relaciona sabedoria à passagem do tempo tem fundamento científico. Com o envelhecimento, o cérebro humano aumenta sua capacidade de solucionar problemas e atinge maior estabilidade emocional. Para a professora da Faculdade de Psicologia da PUC-SP Ruth Lopes, ignorar essas habilidades é um desperdício material. “O corpo perde agilidade, mas há otimização do raciocínio. É uma estupidez. Essa potencialidade não encontrar locais de expressão é uma estupidez, ainda mais se pensarmos num país com tantas carências, como o nosso.”
Uma opção eficaz, defende a professora, é aproximar a experiência grisalha da sociedade civil organizada e da vida pública. Assim, o idoso é visto como sujeito, uma peça que permanece útil para a comunidade. “Ele pode assessorar ou prestar serviços públicos, por exemplo. Em muitos casos, a pessoa mais velha tem tempo e está disposta a isso.”
É o caso de Olga. A presidente do Grupo de Articulação para a Moradia do Idoso na Capital (Garmic) gosta de “incomodar” figuras da Câmara Municipal, pedindo mais tempo de fala nas reuniões da comissão permanente do idoso. “Eles são em sete, nunca estão todos, mas quando vêm, ficam trocando figurinhas entre si, e discursam por 40 minutos e depois nos dão três minutos”, disse. Ela conta que recebeu proposta de emprego no gabinete de um dos vereadores, mas entendeu como uma provocação, e preferiu seguir seu trabalho voluntário.
O engajamento proposto por especialistas visa também abordar a questão do isolamento. O Centro de Longevidade da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, aponta que pessoas entre 55 e 64 anos estão menos envolvidas socialmente do que seus predecessores há 20 anos - por exemplo, casam menos, não interagem tanto com vizinhos ou participam de comunidades religiosas. A tendência é observada em todas as faixas etárias, mas especialmente naquelas que estão a um passo da velhice.
A população mundial ainda está envelhecendo rapidamente. Hoje, vive-se cerca de 30 anos a mais do que no início do século passado. A sobrevida após o período produtivo no mercado de trabalho pode chegar a quase 40 anos. “Fico apreensiva com a ideia de como as futuras gerações vão lidar com esse momento”, afirma Ruth. Irving propõe a incorporação da mão de obra idosa em modelos específicos de contratação - para que seus conhecimentos e o próprio indivíduo não fiquem isolados do todo. A professora Ruth, no entanto, acredita que a longevidade deve ser vista como uma oportunidade de reciclagem e visita a antigos planos. “E não para continuar uma jornada, como burro de carga.” Segundo ela, mitos em torno da aposentadoria precisam ser revistos. “Pouco se fala das pessoas que ficam extremamente felizes por deixarem seus empregos. Ainda persiste a imagem do velho doente, próximo da morte.”
Nada mais distante do cotidiano de Dora Margarida Cioli, 68. Desde que se aposentou, em 2003, a engenheira eletrônica retomou os estudos de música (violão, canto, cavaquinho e percussão), iniciados ainda na adolescência, e aprendeu novos idiomas - já são quatro. Integrante de um grupo cênico-musical, o Eco do Santa Marta, na cidade do Rio, ela decora textos e partituras para apresentações em festivais de poesia e teatro. Preservar o exercício cognitivo por meio de desafios criativos, como faz Dora, tem a dupla vantagem de ser saudável e prazeroso.
Somada ao convívio com familiares e amigos, a aquisição de conhecimentos apresenta resultados positivos contra as chamadas doenças do futuro. Estudo da neuropsicóloga Patrícia Boyle, do Rush Alzheimer’s Disease Center, mostra que pessoas com propósitos bem definidos e que preservam o sentido de suas atividades têm 2,4 menos chances de desenvolver Alzheimer. Além dos compromissos com a música, inclusive em cursos online, Dora faz artesanato.
O desempenho de atividades propositais como estilo de vida é uma das melhores formas de atingir o envelhecimento, defende Irving. Quanto antes as pessoas adequam suas habilidades àquilo que lhes faz sentido, mais cedo o organismo colhe benefícios. E ele não se refere a tirar um tempinho para trabalhos voluntários, somente. Salários atrativos não prendem talentos a postos maçantes, defende.
A estabilidade da indústria farmacêutica não foi suficiente para Lívia Teixeira, de 27. Em 2015, ela trocou o emprego numa multinacional por uma pós-graduação em Psicologia positiva. Queria se tornar coach. A decisão veio depois de descobrir que sofre de fibromialgia, síndrome que gera dor e fraqueza muscular generalizadas. Durante o curso, Lívia descobriu ser importante trabalhar com nichos, daí a ideia de prestar serviços a pessoas que sofrem da mesma doença. “Consegui unir minha experiência à minha formação em saúde e fazer o que realmente tem a ver comigo”, conta.
No caso de Olga, a guinada em busca de propósito veio há 50 anos, com o nascimento da primeira filha. Na época, a pedagoga passou a militar por creches. Viu a primeira ser erguida na paróquia em que frequentava. Em seguida, esteve por quase uma década no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, de onde saiu para se dedicar exclusivamente ao movimento por moradia e à causa da população idosa. Só não abandonou uma atividade: há 30 anos faz serviço de limpeza em um mesmo consultório odontológico, quatro vezes por semana. “Tenho um acordo comigo mesma: não gasto minha renda (dois salários mínimos) com o voluntariado, mas sim tudo o que vem desse bico. Às vezes, se aparece um idoso sem almoço, eu o convido para o restaurante.”
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