"Deus leva vocês, depois traz de volta” disse Anita, a coletora de flores. Afirmou com firmeza no olhar, aquela típica de quem sabe que a vida é feita de chegadas e partidas.
Dá-lhe chão para chegar ao vilarejo, localizado no sopé de um dos pontos mais altos do Estado, o Pico do Itambé, com 2.002 metros de altitude. Capivari é uma vilazinha que se assemelha a um cotovelo: duas ruas, uma curta, outra comprida, cruzam-se por entre travessas repletas de casinhas miúdas, construídas com o suor do trabalho de seus moradores – pouco mais de 400.
Em um arraial que remonta ao século XVIII, o povo vive da agricultura familiar e do turismo de base comunitária. A menos de 10 quilômetros da igreja que marca o ponto de entrada do lugar mora a coletora de flores sempre-vivas de 73 anos, Anita Rodrigues. Depois de um dedo de prosa com moradores, fomos ao seu encontro. O carro ficou para trás da cerca. Nós seguimos adiante. De um lado, os veios rochosos do Itambé. Do outro, a mata rasteira com variações verde acinzentadas.
Alguns metros à frente e lá estavam, sobre a pedra, os primeiros sinais da senhora dourada de sol, sorvida pelo tempo, humana até o último fio do cabelo trançado. Eram ramalhetes de flores geometricamente amarrados e bem distribuídos. A cena cabia precisa na descrição que eu tinha dela. Paramos ali com os olhos pregados nos pastos a sua procura. Nada! Voltamos para a estrada de chão batido.
Estávamos perto de sua casa. Ao aproximarmo-nos, pouco a pouco, sua figura ampliava. Dona Anita estava sentada sobre o gramado, pernas esticadas, lenço na cabeça, tronco curvado, mãos firmes a armar os molhos de macela, todos a formar um círculo amarelo ao redor de seu corpo enxuto. Trocamos cumprimento. – “Oi, prazer!” Seus olhos grandes e verdes transmitem serenidade e disposição. Apesar de maltratada pela lida, ela mantém o brilho da alma intacto.
Tem fala ligeira. É preciso tento para entender o que diz. A simplicidade se apresenta tão bela quanto a doçura de seu todo – uma constituição inteira, graciosa, desprovida de ruídos. A senhora solitária e trabalhadeira nos recebeu com entusiasmo. Bastante expressiva, levantou-se para nos estender a palma da mão dura e forte. – “Vamo entrano. Tem café coado”.
Mora numa casinha erguida no muque pela companheira de cata, Maria de Lurdes Moura. Só Anita vive ali há 31 anos. A tapera com telhado baixo e piso de barro fica nos altos da serra, isolada, quieta entre um quintal de limoeiros, pés de cana e quaresmeiras, a árvore que mais se avista nas redondezas.
Bom que estamos em agosto, época de sua floração. Há tantas que basta perambular um tiquinho para dar de fuças com pencas de suas flores roxas.
“Desde menina eu colho flor, minha filha. Antigamente, ia eu mais meus irmãos, Efigênio, Maria, Geralda, Bernardo, tudo apanhava. O povo de roda ia também. E caminhava muita distância. Conheci bem essas campinas. A gente gostava de fazer. Não tinha outra lida. Depois de colher, bota pra secar. Aí, amarra em feixes. Cada tipo vai separado”, relata Anita imersa em suas memórias. Os nomes são vários, Cedinha, Espeta-Nariz, Lampa, Estrelão, Botão Branco, Coroa, Bem-Casado, Peludo; e as flores, típicas do Cerrado, parecem penetrar por todos os poros da mulher.
A mãe se chamava Carmelita. O pai teve três mulheres. Logo após o casamento, nasceram os primeiros filhos.“ Eu sou de resto, a caçula de treze irmãos.” Anita começou a trabalhar com cinco anos, no roçado dos pais. Vendiam o pouco que produziam. A colheita era realizada para a subsistência da família. Plantavam mandioca, milho, café, laranja. “Era serviço demais. A gente pegava cedo e largava tarde.” Sua vida foi de muita luta. Hoje, tudo o que colhe nos campos reverte em dinheiro para as despesas. “Seu Gumercindo, de Três Barras, vem aqui pra pegar. Vendemos a um real o quilo. Toda vida teve quem comprasse.”
Anita conta que tinha dias em que chegavam tarde da noite com os carregamentos. “A gente pegava muita flor. Carregava uns feixes de até 50 molhos. Amarrava tudo, punha nas costas e trazia. Todo dia. Direto. Se tivesse chovendo, a gente ia. No frio, ia. Sempre só colhi. Nunca aprendi a fazer nada com elas. Ouço falar do artesanato, mas nunca me ensinaram o jeito que monta os arranjos”.
Diferente da realidade em Galheiros, povoado tradicional onde os coletores receberam capacitação por meio de projetos implantados por Universidades e empresas, na região do Serro, a maioria dos moradores decidiu por não investir em novas ideias. “O povo aqui não acreditou. Preferiu continuar na vida que tá acostumado”, diz.
Enquanto na zona rural de Diamantina o trabalho com o artesanato de sempre-vivas mudou a perspectiva das famílias, que conquistaram a sua independência financeira, em Capivari, os coletores continuam a ser explorados por atravessadores. Falta incentivo dos agentes que fizeram apenas uma investida no local. Fim do dia chegando. Hora de voltar para o pernoite no vilarejo.
“Demora mais um pouco”, exclamou Anita quando anunciamos a despedida. Acolhi seu corpo em meus braços. Após um abraço fraterno, falei que tínhamos que ir, mas que nos veríamos em breve. “A senhora espera?”.
– “Deus leva vocês, depois traz de volta”, afirmou com firmeza no olhar, aquela típica de quem sabe que a vida é feita de chegadas e partidas.Fotos: Tom Alves
Simplesmente bela !!!!
ResponderExcluirBela em toda a sua simplicidade. Gracias pela visita, Abração.
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