O amor é a vida acontecendo no momento: sem passado, sem futuro, presente puro, eternidade numa bolha de sabão.
O tempo se mede com batidas. Pode ser medido com as batidas de um relógio ou pode ser medido com as batidas do coração. Os gregos, mais sensíveis do que nós, tinham duas palavras diferentes para indicar esses dois tempos. Ao tempo que se mede com as batidas do relógio – embora eles não tivessem relógios como os nossos – eles davam o nome de chronos. Daí a palavra “cronômetro”.
O pêndulo do relógio oscila numa absoluta indiferença à vida. Com suas batidas vai dividindo o tempo em pedaços iguais: horas, minutos, segundos. A cada quarto de hora soa o mesmo carrilhão, indiferente à vida e à morte, ao riso e ao choro. Agora os cronômetros partem o tempo em fatias ainda menores, que o corpo é incapaz de perceber. Centésimos de segundo: que posso sentir num centésimo de segundo? Que posso viver num centésimo de segundo? Diz Ricardo Reis, no seu poema “Mestre, são plácidas” (que todo dia rezo): “Não há tristezas nem alegrias na nossa vida”. Estranho que ele diga isso. Mas diz certo: o tempo do relógio é indiferente às tristezas e alegrias.
Há, entretanto, o tempo que se mede com as batidas do coração. Ao coração falta a precisão dos cronômetros. Suas batidas dançam ao ritmo da vida – e da morte. Por vezes tranquilo, de repente se agita, tocado pelo medo ou pelo amor. Dá saltos. Tropeça. Trina. Retoma à rotina. A esse tempo de vida os gregos davam o nome de kairós – para o qual não temos correspondente: nossa civilização tem palavras para dizer o tempo dos relógios: a ciência. Mas perdeu as palavras para dizer o tempo do coração.
Chronos é um tempo sem surpresas: a próxima música do carrilhão do relógio de parede acontecerá no exato segundo previsto. Kairós, ao contrário, vive de surpresas. Nunca se sabe quando sua música vai soar. Foi o aniversário da Mariana, minha neta. O relógio me diz, com precisão, o número de segundos decorridos desde o seu nascimento.
Mas o meu coração nada sabe sobre esses números. E, se souber, os números não me dirão nada. Quando eu me lembro, é como se tivesse acabado de acontecer. Disso sabia o Riobaldo, jagunço herói do Grande sertão: Veredas. Sabia, sem saber, que chronos não se mistura com kairós.
A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam. Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância. Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data.
O Sérgio, meu filho, pai da Mariana, contou-me que, olhando para uma fotografia dela, quase mocinha, de repente compreendeu que estava ficando velho. Claro que ele sabe da idade dele. É só fazer as contas. Quem sabe somar e multiplicar tem a chave para entender as medições de chronos. Além disso, havia o espelho: na sua imagem refletida estão as marcas da passagem do tempo, inclusive o cabelo, já branco, antes da hora. Mas o coração dele ainda não havia percebido. Coração não entende chronos. Coração entende vida.
Foi a fotografia da filha, menina que já tem nove anos, que de repente lhe produziu satori: o terceiro olho dele se abriu, ele ficou iluminado – viu-se velho. Sentiu que o tempo passara pelo seu próprio corpo, deixando-o marcado.
E chorou. Riobaldo de novo: “Toda saudade é uma espécie de velhice.” Velhice não se mede pelos números do chronos; ela se mede por saudade. Saudade é o corpo brigando com o chronos. De novo o mesmo poema de Ricardo Reis: ele fala do deus atroz que os próprios filhos devora sempre”. Chronos é o deus terrível que vai comendo a gente e as coisas que a gente ama. A saudade cresce no corpo no lugar onde chronos mordeu. É um testemunho da nossa condição de mutilados – um tipo de prótese que dói.
Kairós mede a vida pelas pulsações do amor. O amor não suporta perder o que se amou: a filha nenezinho, no colo, no meu colo, nenezinho e colo que o tempo levou mas eu gostaria que não tivessem sido levados! Estão na fotografia, essa invenção que se inventou para enganar o chronos, pelo congelamento do instante.
Chronos me diz que eu nada possuo. Nem mesmo o meu corpo. Se não possuo o meu próprio corpo – o espelho e a fotografia confirmam – como posso pretender possuir coisas com esse corpo que não possuo?
Heráclito foi um filósofo grego que se deixou fascinar pelo tempo. Ele era fascinado pelo rio. Contemplava o rio e via que tudo é rio. Como Vaseduva, o barqueiro que ensinou Sidarta. Percebeu que não é possível entrar duas vezes no mesmo rio; na segunda vez as águas serão outras, o primeiro rio já não existirá. Tudo é água que flui: as montanhas, as casas, as pedras, as árvores, os animais, os filhos, o corpo … Assim é tudo, assim é a vida: tempo que flui sem parar. Daquilo que ele supostamente escreveu, restam apenas fragmentos enigmáticos. Dentre eles, um me encanta:
“Tempo é criança brincando, jogando.” Tempo é criança?
O que o filósofo queria dizer exatamente eu não sei. Mas eu sei que as crianças odeiam chronos, odeiam as ordens que vêm dos relógios. O relógio é o tempo do dever: corpo engaiolado. Mas as crianças só reconhecem, como marcadores do seu tempo, os seus próprios corpos. As crianças não usam relógios para marcar tempo; usam relógios como brinquedos. Brinquedo é o tempo do prazer: corpo com asas. Que maravilhosa transformação: usar a máquina medidora do tempo para subverter o tempo. Criança é kairós brincando com o chronos, como se ele fosse bolhas de sabão.
O ano chega ao fim. Ficou velho. Chronos faz as somas e me diz que eu também fiquei mais velho. Faço as subtrações e percebo que me resta cada vez menos tempo. Fico triste: saudade antes da hora. A Raquel, quando tinha três anos, me acordou para saber se quando eu morresse eu iria ficar triste! Lembro-me do verso da Cecília, para a avó:
“Tu eras uma ausência que se demorava, uma despedida pronta a cumprir-se”.
Aí kairós vem em meu socorro, para espantar a tristeza. Vem como criança, brincando com chronos. Nas mãos de kairós, chronos se transforma em bolhas de sabão: redondas, perfeitas, efêmeras, eternas. Como o amor. Amor também é bolha de sabão. Disso sabia o Vinicius que escreveu para a mulher amada: “Que não seja eterno, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure.” Mas, além de todas as namoradas, Vinicius namorava a vida. O amor é a vida acontecendo no momento: sem passado, sem futuro, presente puro, eternidade numa bolha de sabão. Robert Frost, sem ter tantas namoradas, namorou a vida em cada momento. Na sua lápide ele mandou escrever: “Teve um caso de amor com a vida … ” Ponho-me a brincar com a vida e uma estranha metamorfose acontece: deixo de ser velho. Sou criança de novo.
Rubem Alves – O amor que acende a lua Fonte: http://www.pvf.com.br
Comentários
Postar um comentário