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Maria Alice Vergueiro - Através do espelho

A atriz Maria Alice Vergueiro, em ensaio para a revista Serafina de outubro de 2016. Por João Kehl e Rafael Jacinto.

Aos 82, Maria Alice Vergueiro assume o Parkinson no palco e dirige peças.

Comentário do Blog: O ensaio fotográfico completo está Aqui com a foto polêmica apagada no Instagran/Facebook. "O Instagram indicou que a imagem não levaria o público a uma “experiência confortável”. A grande maioria dos internautas que comentaram a notícia apoiaram a decisão da censura, alegando ser uma imagem de “mau gosto”, “humilhante”, um “nojo”, e que o idoso deveria ter “noção de dignidade”, ser “discreto”. Alegaram que a retratada, Maria Alice Vergueiro, não deveria se expor dessa maneira." Assim registru Camila Appel em seu artigo  Os seios de Maria Alice.

A memória da atriz e diretora Maria Alice Vergueiro não tem hora certa para fazer hora. O Parkinson foi diagnosticado há mais de 15 anos. Mas foi na temporada de "As Três Velhas" (2010) que ela expôs a público a presença inequívoca de um dos sintomas, interrompendo, em 2014, uma sessão da peça ao perceber que não lembraria uma palavra sequer do texto, assinado pelo chileno Alejandro Jodorowsky.

Não é um estado permanente, suas lembranças vão e voltam como se à mercê de uma maré. Quando recebeu a Serafina, no início de outubro, em seu apartamento em Higienópolis, a atriz estava com a memória afiadíssima, o que possibilitou recordar-se inclusive da sensação de esquecer o texto em cena. "Sinto pavor", diz. "Mas ainda tenho a possibilidade de dar uma entrevista como esta. E de falar. E de pensar sobre o que estou falando. Isso é uma dádiva."

Para a estrela do vídeo "Tapa na Pantera", tornou-se nítido que a memória não é um caminho de retorno ao passado. "É um caminho pra frente em que você tem de restaurar o que ficou para trás", explica. Além da carreira no teatro -passando pela formação do Ornitorrinco, os palcos de Zé Celso, Gerald Thomas, Augusto Boal e, mais recentemente, a criação do Pândega, grupo que fará dez anos em 2017-, Maria Alice foi pedagoga. Ensinou artes e teatro em escolas e na USP.

Aos 82 anos, intui a proximidade da morte, levando os movimentos quebrados do Parkinson para a cena, espécie de butô, o estilo japonês do pós-Guerra que reverencia os mortos. Em "Why the Horse?" (2015), ainda em turnê, Maria Alice encena o próprio velório, cercada de lápides com os nomes dos artistas mortos que abasteceram seu repertório e formação.

A peça inclui um momento em que ela se deita no caixão. "Embora eu esteja com esse tremor, faço de tudo para não dar bandeira, para não ficar muito... muito viva, digamos assim", brinca.

DOENÇA NO TABLADO -  O documentário "Górgona", que será exibido no dia 31 de outubro na Mostra Internacional de Cinema de SP, registra o início dessa fase em que a atriz começa a compreender que a velhice não lhe tiraria de cena, pelo contrário, traria a possibilidade de outras identidades.

Com direção de Fábio Furtado e Pedro Jezler, o filme costura bastidores dos cinco anos de temporada de "As Três Velhas". Sem entrevistas, apenas a lente aberta, permite observar a vida no camarim e momentos bastante íntimos compartilhados com os atores Luciano Chirolli e Pascoal da Conceição.

Com o fim da temporada de "As Três Velhas", Maria Alice cogitou a interrupção da carreira de intérprete. Mas ela foi convencida de que havia uma possibilidade performática inclusive na evolução da doença. "Decidimos assumir [o problema da memória]", conta Furtado, que assina a dramaturgia da peça. Em "Why the Horse", os companheiros de cena de Maria Alice passam soprando para ela o texto, à vista do público. Antes, era a atriz Carolina Splendore, integrante do Pândega, quem fazia o ponto eletrônico. Splendore diz que sabe o momento em que Maria Alice precisa de ajuda, "por um olhar dela, ou um movimento de mão."

Na sala de sua casa, um apartamento herdado da mãe, Maria Alice também se cerca de objetos e fotografias que sopram lembranças de uma vida inteira. A imagem de Samuel Beckett, no centro de uma parede, se avizinha a retratos dos netos, da bisavó, de um pôster de "Mãe Coragem e Seus Filhos", que estrelou em 2002. Instada a contar a história de um objeto, a atriz aponta a poltrona em que o pai morreu quando ela tinha 21 anos e estava grávida de seu primeiro filho.

TARÔ DA VIDA - Em 2007, quando Jodorowsky tirou o tarô para Maria Alice Vergueiro em uma sessão pública, a análise do dramaturgo apontou a influência "fortíssima" de um poder místico e também a presença de um arquétipo masculino determinante na sua vida. Diante da plateia, ela foi questionada sobre seu pai.

Ao microfone, contou que a morte dele foi um ponto de virada na própria trajetória de artista. "Durante muito tempo procurei aquela energia em outros homens, até que percebi que a energia estava em mim. Comecei a compreender meu pai como ser humano, não mais como um deus. Neste momento, eu me aquietei, porque vi como é interessante não ser um mito."

Cacá Rosset, com quem Maria Alice fundou o teatro do Ornitorrinco, diz que ela tem "um descaralhamento". Neologismo enigmático, talvez diga respeito a algo mais profundo do que falta de pudor, ou o oposto da castração.

A trajetória da atriz inclui uma transição, digamos, performática, do ensino para o teatro. Em 1974, uma comissão de sindicância foi aberta na USP para apurar um espetáculo em que Maria Alice era "enrabada" por Rosset (palavras do ator) enquanto gritava "Tudo pelo teatro brasileiro". Ela foi afastada.

Rosset tem a tese de que a expulsão de Maria Alice fez com que ela passasse a se dedicar mais à vida de artista. Ela diz que a morte do pai e a separação do marido libertaram-na do bom-comportamento de uma família quatrocentona. Naquela mesma década de 1970, traficou 4.000 ácidos da Califórnia, e vendeu todo o lote para pagar aluguéis do Teatro Oficina. Maria Alice associa o uso do LSD e de outras drogas com um momento em que a loucura era deslocada de seu velho lugar nos livros de medicina. Cita o neurologista Oliver Sacks, o antropólogo Carlos Castañeda e defende que uma percepção mais ampla seja levada para os momentos de sobriedade.

Não tem medo de fazer críticas a colegas, diz que se desinteressou por trabalhar com Zé Celso já nos anos 1970 e que não via o Ornitorrinco exatamente como uma companhia, mas sim como um teatro administrado por Rosset.

Ela lamenta não ter reclamado na época pelo fato de que não podia, por exemplo, ter acesso às finanças do grupo. Hoje, defende no Pândega uma participação igualitária. Do que ela teria medo? A resposta volta a ser da morte, dos "bichinhos" que vão comer sua carne. "Por mais que te cremem, ou que você tenha a oportunidade de viver na escuridão total", diz, "fico pensando: vai que, de repente, você sente falta de ar... Sei que é um absurdo pensar nisso, pois já estarei em decomposição...".

Segue um silêncio, e Maria Alice conclui sem meias palavras: "É uma merda".  Com as mãos tremendo no colo - as unhas pintadas com esmalte preto-, ela ri. Ri não... ela gargalha.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/ por GUSTAVO FIORATTI em 30/10/2016




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