Pular para o conteúdo principal

Setenta anos, porque não? Lia Luft

Comentário do Blog: A escritora Lia Luft nasceu em 15 de setembro de 1938. Em 2015 publiquei este artigo no Blog mas, hoje, senti vontade de trazê-lo de volta, e aqui está: Setenta anos, porque não?



"Acho essa coisa da idade fascinante: tem a ver com o modo como lidamos com a vida.


Se a gente a considera uma ladeira que desce a partir da primeira ruga, ou do começo de barriguinha, então viver é de certa forma uma desgraceira que acaba na morte.Desse ponto de vista, a vida passa a ser uma doença crônica de prognóstico sombrio.
Nessa festa sem graça, quem fica animado?
Quem não se amargura? 
O tempo me intriga, como tantas coisas, desde quando eu tinha uns 5 anos.
Quando esta coluna for publicada, mais ou menos por aqueles dias, estarei fazendo 70.


Primeiro, há meses, pensei numa grande festa, eu que sou avessa a badalações e gosto de grupos bem pequenos.
Mas pensei: bem, 70 vale a pena!
Aos poucos fui percebendo que hoje em dia fazer 70 anos é uma banalidade.
Vou reunir filhos e pouquíssimos amigos e fazer aquela festona nos 80. Ou 90.


Pois se minhas avós eram damas idosas aos 50, sempre de livro na mão lendo na poltrona junto à janela, com vestidos discretíssimos, pretos de florzinha branca (ou, em horas mais festivas, minúsculas flores ou bolinhas coloridas), hoje aos 70 estamos fazendo projetos, viajando (pode ser simplesmente à cidade vizinha para visitar uma amiga), indo ao teatro e ao cinema, indo a restaurante (pode ser o de quilo, ali na esquina), eventualmente namorando ou casando de novo. Ou dando risada à toa com os netos e fazendo uma excursão com os filhos.


Tudo isso sem esquecer a universidade, ou aprender a ler, ou visitar pela primeira vez uma galeria de arte, ou comer sorvete na calçada batendo papo com alguma nova amiga.


Outro dia minha neta de quase 10 anos me disse:
"Você é a pessoa mais divertida que conheço, é a única avó do mundo que sai para comprar mamão e volta com um buldogue".


Era verdade.


Se sou tão divertida não sei, mas gosto que me vejam não como a chata que se queixa, reclama e cobra, mas como aquela que de verdade vai comprar a fruta de que o marido mais gosta, anda com vontade de ter de novo um cachorro e entra na loja quase ao lado do mercado.


Por um acaso singular, pois não são cachorros muito comuns, ali há um filhotinho de buldogue inglês que voltou comigo para casa em lugar da fruta.
Foi batizada de Emily e virou mais uma alegria.


E por que não?


Por que a passagem do tempo deveria nos tornar mais rígidas, mais chatas, mais queixosas, mais intolerantes, espantalhos dos afetos e da alegria?


"Why be normal?", dizia o adesivo que amigos meus mandaram fazer há muitos anos para colocarmos em nossos carros só pela diversão, pois no fundo não queria dizer nada além disso: em nossas vidas atribuladas, cheias de compromissos, trabalho, pouco dinheiro, cada um com seus ônus e bônus, a gente podia cometer essa transgressão tão inocente e engraçada, de ter aquele adesivo no carro.


Não precisamos ser tão incrivelmente sérios, cobrar tanto de nós, dos outros e da vida, críticos o tempo todo, vendo só o lado mais feio do mundo.


Das pessoas. Da própria família. Dos amigos.


Se formos os eternos acusadores, acabaremos com um gosto amargo na boca: o amargor de nossas próprias palavras e sentimentos.


Se não soubermos rir, se tivermos desaprendido como dar uma boa risada, ficaremos com a cara hirta das máscaras das cirurgias exageradas, dos remendos e intervenções para manter ou recuperar a "beleza".


A alma tem suas dores, e para se curar necessita de projetos e afetos.
Precisa acreditar em alguma coisa.


O projeto pode ser comprar um vaso de flor e botar na janela ou na mesa, para contemplarmos beleza.


Pode ser o telefonema para o velho amigo enfermo.


Pode ser a reconciliação com o filho que nos magoou, ou com o pai que relegamos, quando não nos podia mais sustentar.


O afeto pode incluir uma pequena buldogue chamada Emily, para alegrar ainda mais a casa, as pessoas, sobretudo as crianças, que estão sempre por aqui, o maior presente de uma vida de apenas 70 anos."

Comentários

  1. Vera Lúcia Quadra de Oliveira27 de fevereiro de 2016 às 13:34

    Adorei a maneira de encarar os 70, mas se puder vou fazer uma festa.

    ResponderExcluir
  2. Com certeza vale comemorar, VeraLúcia. Volte sempre. Um abraço.
    É oportuno que vejas aqui no Blog este poste, é só clicar em http://www.vivaavelhice.com.br/2016/01/nunca-deixes-de-comemorar-um-aniversario.html

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

O Dente-de-Leão e o Viva a Velhice

  A belíssima lenda do  dente-de leão e seus significados Segundo uma lenda irlandesa, o dente-de-leão é a morada das fadas, uma vez que elas eram livres para se movimentarem nos prados. Quando a Terra era habitada por gnomos, elfos e fadas, essas criaturas viviam livremente na natureza. A chegada do homem os forçou a se refugiar na floresta. Mas   as fadas   tinham roupas muito chamativas para conseguirem se camuflar em seus arredores. Por esta razão, elas foram forçadas a se tornarem dentes-de-leão. Comentário do Blog: A beleza  do dente-de-leão está na sua simplicidade. No convívio perene com a natureza, no quase mistério sutil e mágico da sua multiplicação. Por isso e por muito mais  é que elegi o dente-de-leão  como símbolo ou marca do Viva a Velhice. Imagem  Ervanária Palmeira   O dente-de-leão é uma planta perene, típica dos climas temperados, que espontaneamente cresce praticamente em todo o lugar: na beira de estrada, à beira de campos de cultivo, prados, planícies, colinas e

‘Quem anda no trilho é trem de ferro, sou água que corre entre pedras’ – Manoel de Barros

  Dirigido pelo cineasta vencedor do Oscar, Laurent Witz, ‘Cogs’ conta a história de um mundo construído em um sistema mecanizado que favorece apenas alguns. Segue dois personagens cujas vidas parecem predeterminadas por este sistema e as circunstâncias em que nasceram. O filme foi feito para o lançamento internacional da AIME, uma organização de caridade em missão para criar um mundo mais justo, criando igualdade no sistema educacional. O curta-animação ‘Cogs’ conta a história de dois meninos que se encontram, literalmente, em faixas separadas e pré-determinadas em suas vidas, e o drama depende do esforço para libertar-se dessas limitações impostas. “Andar sobre trilhos pode ser bom ou mau. Quando uma economia anda sobre trilhos parece que é bom. Quando os seres humanos andam sobre trilhos é mau sinal, é sinal de desumanização, de que a decisão transitou do homem para a engrenagem que construiu. Este cenário distópico assombra a literatura e o cinema ocidentais. Que fazer?  A resp

Poesia

De Mario Quintana.... mulheres. Aos 3 anos: Ela olha pra si mesma e vê uma rainha. Aos 8 anos: Ela olha para si e vê Cinderela.   Aos 15 anos: Ela olha e vê uma freira horrorosa.   Aos 20 anos: Ela olha e se vê muito gorda, muito magra, muito alta, muito baixa, muito liso, muito encaracolado, decide sair mas, vai sofrendo.   Aos 30 anos: Ela olha pra si mesma e vê muito gorda, muito magra, muito alta, muitobaixa, muito liso muito encaracolado, mas decide que agora não tem tempo pra consertar então vai sair assim mesmo.   Aos 40 anos: Ela se olha e se vê muito gorda, muito magra, muito alta, muito baixa, muito liso, muito encaracolado, mas diz: pelo menos eu sou uma boa pessoa e sai mesmo assim.   Aos 50 anos: Ela olha pra si mesma e se vê como é. Sai e vai pra onde ela bem entender.   Aos 60 anos: Ela se olha e lembra de todas as pessoas que não podem mais se olhar no espelho. Sai de casa e conquista o mundo.   Aos 70 anos: Ela olha para si e vê sabedoria, ri

Não se lamente por envelhecer

  Não se lamente por envelhecer: é um privilégio negado a muitos Por  Revista Pazes  - janeiro 11, 2016 Envelhecer  é um privilégio, uma arte, um presente. Somar cabelos brancos, arrancar folhas no calendário e fazer aniversário deveria ser sempre um motivo de alegria. De alegria pela vida e pelo o que estar aqui representa. Todas as nossas mudanças físicas são reflexo da vida, algo do que nos podemos sentir muito orgulhosos. Temos que agradecer pela oportunidade de fazer aniversário, pois graças a ele, cada dia podemos compartilhar momentos com aquelas pessoas que mais gostamos, podemos desfrutar dos prazeres da vida, desenhar sorrisos e construir com nossa presença um mundo melhor… As rugas nos fazem lembrar onde estiveram os sorrisos As rugas são um sincero e bonito reflexo da idade, contada com os sorrisos dos nossos rostos. Mas quando começam a aparecer, nos fazem perceber quão efêmera e fugaz é a vida. Como consequência, frequentemente isso nos faz sentir desajustados e incômodos

A velhice em poesia

Duas formas de ver a velhice. Você está convidado a "poetizar" por aqui . Sobre o tema que lhe agradar. Construiremos a várias mãos "o domingo com poesia". A Velhice Pede Desculpas - Cecília Meireles, in Poemas 1958   Tão velho estou como árvore no inverno, vulcão sufocado, pássaro sonolento. Tão velho estou, de pálpebras baixas, acostumado apenas ao som das músicas, à forma das letras. Fere-me a luz das lâmpadas, o grito frenético dos provisórios dias do mundo: Mas há um sol eterno, eterno e brando e uma voz que não me canso, muito longe, de ouvir. Desculpai-me esta face, que se fez resignada: já não é a minha, mas a do tempo, com seus muitos episódios. Desculpai-me não ser bem eu: mas um fantasma de tudo. Recebereis em mim muitos mil anos, é certo, com suas sombras, porém, suas intermináveis sombras. Desculpai-me viver ainda: que os destroços, mesmo os da maior glória, são na verdade só destroços, destroços. A velhice   - Olavo Bilac Olha estas velhas árvores, ma