Aos 64
anos, o especialista acumula pelo
menos quatro diferentes trabalhos, todos ligados a estudos da longevidade |
Alexandre Kalache, médico geriatra,
ex-coordenador do programa de envelhecimento global da Organização Mundial da
Saúde e consultor da Academia de Medicina de Nova Iorque
Anna Paula Franco -
terceiraidade@gazetadopovo.com.br
Texto publicado na edição impressa de 31 de dezembro de 2009
O ritmo do envelhecimento da população
brasileira aponta para um cenário que exige medidas criativas e visionárias. A
projeção da inversão do perfil demográfico do país, com mais idosos do que
jovens em 2030, conforme pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), indica mudanças urgentes em políticas públicas e condutas
sociais em relação ao idoso. “O Brasil envelhece mais rapidamente do que outros
países e temos o desafio de criar nossos próprios modelos de atenção a essa
população”, explica o médico geriatra carioca Alexandre Kalache*.
Com o aumento da população idosa no
país, quais as medidas mais urgentes que precisam ser adotadas pela sociedade?
A questão é inegavelmente de
desigualdades acumuladas ao longo do curso de vida. Em 1945, a expectativa era
de 43 anos. Hoje a esperança de vida do brasileiro está chegando aos 74. Mais
ganho em anos que ao longo da história da humanidade – da Antiguidade até o
início do século 20, a esperança de vida andava por volta dos 30 anos.
Este aumento se deu nas medidas de
Saúde Pública – saneamento, água potável, esgoto – há melhoras na nutrição, há
um aumento do nível educacional (sobretudo das mães) fazendo com que a mortalidade
infantil e da infância tenham diminuído. Somente nas últimas duas ou três
décadas começamos a juntar a isso o impacto da tecnologia médica com relevância
para as doenças crônicas.
Mas quando falamos de qualidade de vida
do adulto, estamos falando em primeiro lugar do controle das doenças
responsáveis por incapacidades. Quando há perda da independência estamos
“lascados”. E a sociedade paga por isso. A produtividade do indivíduo cai e,
além do mais, haverá necessidade de alguém prestar os cuidados. Este alguém é,
via de regra, uma mulher: não remunerada para fazê-lo, sem treinamento
específico, tentando adivinhar o que e como melhor fazer. Um ônus incrível.
Para os idosos ricos, com acesso a bons
planos de saúde, morando, comendo e se recreando bem... nunca foi tão bom
envelhecer.
O ritmo do envelhecimento da população
brasileira está mais acelerado do que em outros países?
Em 2000, o total de idosos no mundo era
de 600 milhões. No ano 2050, serão 2 bilhões: um aumento de 350%. A população
como um todo terá, no mesmo período, aumentado de 6 para 9 bilhões ou seja, 50
% de aumento. E será nos países em desenvolvimentos onde este aumento será
maior – dos 400 milhões em 2000 para 1,7 bilhão em 2050.
No Brasil, em 2050 chegaremos a 60
milhões contra os 21 milhões de idosos de hoje. Outros países envelheceram
também rapidamente, mas o Brasil será um dos campeões. Nós dobraremos a
proporção de idosos, dos 9 % atuais, em menos de 20 anos, com recursos ainda
capengas, disputando com outras demandas – de educação dos jovens à dengue, de
construção de estradas à geração de empregos decentes. Não será fácil. Até
porque os modelos de políticas dos países já envelhecidos não nos servem. Se as
copiarmos, estaremos repetindo a história velha da desigualdade: privilegiaremos
alguns e a massa dos idosos ficará de fora.
E quais as consequências desse novo
perfil demográfico?
Conseguimos esta conquista social:
envelhecer. O que acelera o envelhecimento populacional do Brasil é a
diminuição no numero de jovens. Há duas ou três décadas nossa natalidade caiu
de forma vertiginosa. Em praticamente uma geração, diminuímos de seis para dois
filhos por casal. Daqui a pouco passaremos a ser uma população que encolhe –
como a Rússia, o Japão, a Alemanha de hoje. Para o Brasil, o desafio vai exigir
muita criatividade. E devemos aceitar este desafio como uma oportunidade: se
formos mesmo tão imaginativos como pensamos, o Brasil tem uma excelente
oportunidade: ser pioneiro no desenvolvimento de políticas que permitam a
países ainda em desenvolvimento virarem um laboratório social, exportando
políticas sustentáveis para uma nova realidade demográfica.
Em 1975, quando fiz minha tese de
mestrado em Londres e ousei prever que o Brasil ia envelhecer e rapidamente, me
chamaram de maluco. Mas ousei dizê-lo porque estava olhando para o processo de
modernização que já experimentávamos e o surgir de métodos contraceptivos
eficazes, confiáveis e baratos. Não deu outra. Agora, talvez me chamem de novo
de maluco, sugerindo que nossa população venha a encolher. Não será de
imediato: nossas altas taxas de fecundidades de 20, 30 anos atrás significam
que há muitas mulheres em idade reprodutiva (e muitas só tendo seus filhos
tarde, a partir dos 30 anos). Mas quando este bojo populacional passar, aí
virão as poucas crianças que estão nascendo agora. A diferença é que daqui a 30
anos eu provavelmente não esteja por aqui para saber se desta vez terei errado
em minha ousadia.
As mudanças são urgentes?
Quando a gente fala de 2050 tem gente
que diz : “mas isso será daqui a muito tempo”. Não é não. Aquilo que nunca
havia acontecido na história da humanidade estará acontecendo em quatro
décadas: ser possível envelhecer assim, tão rapidamente em paralelo a outros
grandes desafios para conquistar o pleno desenvolvimento. Por outro lado, há
que lembrar que para ter mais de 60 anos daqui a quatro anos, basta ter 20
hoje. Ou seja, estamos falando de uma população de idosos que já é adulta hoje.
O aumento dos idosos e a queda de
crianças e jovens não força um novo olhar sobre políticas de atenção?
Um dos grandes desafios é o despreparo,
em geral, dos recursos humanos em relação ao envelhecimento. Nossos médicos
estão sendo treinados para o século 20, não para o 21. Aprendem tudo sobre
bebês, criancinhas e mulheres grávidas. E vão passar o resto da vida tratando
de idosos. Há uma necessidade imperiosa de mudar o currículo de nossas escolas
médicas. E não estou falando de formar mais geriatras. Eles são necessários por
deterem o conhecimento e portanto, terem a função de formadores, de treinar os
demais médicos e estudantes. Seja qual for a especialidade que um jovem escolha
– endocrinologia, gastroendocrinologia, cardiologia, cirurgia geral, ortopedia,
medicina de família – esses jovens doutores vão se deparar em sua prática
profissional com o grupo da população que mais cresce e que tem mais
enfermidades crônicas. Ou seja, não são pacientes com doenças infecciosas que
de regra ou matam ou se curam em pouco tempo. São problemas que, quando se
instalam, ficam para o resto da vida. E dai você terá especialistas que estarão
lidando com idosos o tempo todo. Se o médico quiser “escapar” dos idosos, vai
precisar escolher Pediatria ou Obstetrícia ou deve aprender tudo o que puder
sobre envelhecimento, pois isso lhe será extremamente útil.
Qual será o perfil do idoso em 2030,
2050? A idade de 60 anos não vai ficar defasada diante da longevidade do
brasileiro e das suas condições gerais de saúde e produtividade?
Vamos ter de reinventar o curso de vida
à medida que as sociedades envelhecem. A forma tradicional – de um terço
estudando/se preparando, o segundo trabalhando e o terceiro “se recreando” –
não vai ser sustentável, nem satisfatório. Estou falando para a camada da
população para a qual esta divisão é real.
Com a velocidade de inovações
tecnológicas, será impossível aprender tudo no início da vida. Reciclar será
cada vez mais a tônica. E, portanto, teremos de intercalar períodos de
produtividade com períodos de aquisição de conhecimento. E a ideia de
aposentadoria compulsória por volta dos 60 também vai caducar. Quando o Bismark
[Otto Von Bismark, chanceler prussiano, 1862-1890] criou a Previdência Social,
fazia sentido aposentadoria aos 65: poucos chegavam lá e, quando chegavam, não
duravam muito mais e já estavam sem condições físicas de seguir trabalhando.
E o idoso de hoje, como deve encarar o
envelhecimento?
Envelhecimento requer uma perspectiva
de curso de vida. A única forma de assegurar uma velhice com qualidade de vida,
com saúde, sem perda da independência, é investindo nas etapas da vida
anteriores. Haverá progresso tecnológico sim, mas, na essência, a forma de
envelhecer bem reside no comportamento, nos estilos de vida que adotamos, na
nossa atitude em relação ao próprio envelhecimento: sendo positivos, ativos
física e mentalmente, dando a volta por cima das dificuldades que ele mesmo
impõe. Não esperar aos 80 anos ter a velocidade ou a rapidez que tínhamos aos
20 ou 30, mas aceitar que, desde que mantenhamos nossa capacidade funcional no
mais alto nível possível, estaremos envelhecendo bem, independentes.
Idosos ainda são vítimas de muito
preconceito. Isso vem mudando ao longo dos anos?
Ainda somos uma sociedade
excessivamente orientada para os jovens. Os padrões de beleza e eficiência
excluem o idoso. No passado havia (por vezes paternalístico e falso) o
“respeito” pelo idoso. Mas eram poucos e refletiam valores de uma sociedade patriarcal,
rural, tradicional. Naqueles tempos nem tudo era tão maravilhoso. O respeito ao
idoso era proporcional ao seu valor econômico. A maioria vivia de favores da
família, o que sempre representa uma situação vulnerável, de subjeção. Voltar
atrás não só é impossível como tampouco de interesse para a maioria dos idosos
de hoje, que dirão de amanhã.
Um dos problemas relacionados a tudo
isso é que olhamos para os idosos como se fosse um grupo homogêneo quando, na
verdade, estamos nos referindo a um grupo que abrange indivíduos desde os 60
até os 100 anos. Um grupo de adolescentes é muito mais homogêneo, teve pouco
tempo para se diferenciar entre si. Os idosos refletem toda uma vida de
experiências extremamente diversas, mas acabam na mesma gaveta.
O papel fundamental aqui cabe a mídia.
Enquanto forem perpetuados os estereótipos do velho gagá, passivo, confuso,
conservador, a sociedade continuará os considerando como tais.
* A aposentadoria compulsória como coordenador de projetos de envelhecimento na Organização Mundial da Saúde, há dois anos, inaugurou uma nova etapa na carreira de Kalache. Aos 64 anos, o especialista acumula pelo menos quatro diferentes trabalhos, todos ligados a estudos da longevidade: é pesquisador da Academia de Medicina de Nova Iorque, embaixador do HelpAge International, sediada em Londres, é consultor sobre o tema no Brasil e no exterior e está coordenando a instalação do Centro Internacional de Envelhecimento, no Rio de Janeiro. Kalache foi o criador do Guia da OMS das cidades amigas dos idosos, em 2007, com base em pesquisas em 35 cidades em todo o mundo. Nesta entrevista, ele comenta sobre a mudança do perfil do idoso brasileiro e como o país deve se preparar para encarar o envelhecimento como pauta de políticas públicas.
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